quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Te doy una canción

Mauro Iasi

Quanto tempo duram as obras?
Tanto quanto ainda não estão completas.
Pois, enquanto exigem trabalho
Não entram em decadência”
B. Brecht
A Revolução Cubana faz aniversário de 54 anos. Caso consideremos o quadro geral dos tempos em que vivemos, já em si um grande feito, isto é, a experiência cubana vai atravessando da metade de um século ao início do outro com uma dignidade rara em nossa época. Por isso, parabéns aos nossos camaradas cubanos!
No Congresso de fundação do PCC, em 1965, Fidel fazia um alerta que hoje ganha uma significância maior. Dizia o líder cubano:
“Não é fácil, dada a complexidade dos problemas atuais e do mundo atual, manter esta conduta, manter esse inflexível critério, manter essa independência soberana. Mas nós havemos de mantê-la. Essa Revolução não foi importada de parte nenhuma, é um produto autêntico do nosso país, ninguém nos disse como a devíamos fazer e nós a fizemos. Ninguém deverá dizer-nos como a teremos de prosseguir, e nós prosseguiremos. Aprendemos a escrever a história continuaremos a escrevê-la. Que ninguém duvide disso!”
Bom, o mundo ficou ainda mais complexo e incrivelmente mais difícil. Fidel se referia à divisão do mundo socialista e ao cisma entre URSS e China e alertava para o fato que os problemas e os rumos da revolução cubana deveriam ser pensados não a partir de modelos preconcebidos ou referencias externas, por mais importantes que esses fossem. Em outra parte de seu discurso lembrando que o marxismo é uma doutrina revolucionária e não um dogma, dizia que “pretender encerrar o marxismo numa espécie de catecismo é ser antimarxista”. Fundado neste pressuposto, Fidel desenvolve seu argumento afirmando que a diversidade das situações exigirá diferentes interpretações e aquelas que se mostrarem corretas e forem consequentemente aplicadas é que podem se chamar de revolucionárias.
Tal princípio se expressa desde a definição das formas estratégicas pelas quais se desenvolveu a luta revolucionária, a definição dos rumos econômicos quando da liderança de Che no ministério responsável, na política internacional e tantos outros exemplos.
Hoje enfrentamos uma situação ainda mais adversa. O bloco socialista se desfez, a Rússia restaurou o capitalismo num misto de monopolismo e gangsterismo, a China o restaura buscando manter o monopólio do poder político com o Partido Comunista ao mesmo tempo em que abre suas fileiras aos novos milionários que brotam do desenvolvimento acelerado da economia de mercado. Neste cenário o que vemos em Cuba tem que ser analisado com cautela. Por um lado trata-se de dar respostas a organização econômica que mantenha a ilha e suas estruturais deficiências em condições de garantir a vida de seus habitantes em um quadro em que não mais se pode contar com o bloco socialista, de outro, a intenção expressa de manter o rumo socialista e as conquistas da revolução nas áreas essenciais como saúde, educação, alimentação e outras.
As recentes mudanças anunciadas vão, aos poucos, revelando os caminhos escolhidos. Respeitando a autonomia e independência que este povo soube com dignidade conquistar só podemos lembrar os princípios anunciados por Fidel: aqueles que souberem apontar alternativas coerentes e as aplicarem de maneira consequente poderão se chamar de revolucionários, os outros serão suplantados.
Nas circunstâncias em que se encontram, os cubanos parecem partir da constatação que é necessário abrir setores da economia ao mercado e reduzir a dimensão da estrutura pública socializada, mantendo o controle político ao reforçar as estruturas do poder popular e a capacidade de direção do Partido. Há uma evidente aproximação da referencia chinesa, mas há diferenças evidentes não apenas pela dimensão das economias dos dois países, como da história política destas formações sociais tão distintas. Esperamos, sinceramente, que os resultados sejam também distintos.
Como estamos iniciando um novo ano, vamos apenas desejar sucesso aos nossos camaradas e confiar em sua determinação de manter nossas metas e horizontes socialistas, pois eles são estratégicos no mundo que viveremos daqui para adiante, para Cuba e para a humanidade. No mesmo discurso Fidel afirmava: “Saberemos correr os riscos desse mundo com dignidade e serenidade. Nossa sorte será a dos outros povos e nosso destino será o destino do mundo”. Para o bem, ou para o mal.
Em épocas como estas, quando exilamos em nós as certezas e convicções que o mundo parece abandonar, abre-se a possibilidade do destino trágico, como teorizou tão bem Lukács. Então busquemos na poesia e na arte a forma de expressão de nossas angústias.
Aqui, mais uma vez, recorro à Silvio Rodriguez que em uma música me lembrou: Martí me ensinou, e creio nele a cada dia, ainda que a crua economia tenha parido outra verdade.
Em seu mais recente álbum, Segunda Cita, Silvio produziu um verdadeiro manifesto em uma canção especialmente dedicado ao aniversário da Revolução Cubana (neste caso, a música foi composta em 2008, ao 49a aniversário) que se chama Sea Señora. Na nota explicativa que acompanha o encarte o autor aclara suas intenções aos dizer que a canção “é um voto à evolução política em Cuba, sem esquecer os pilares de nossa história”.
Após, nos primeiros versos, expressar seu desejo que esta senhora que já foi donzela, aprofunde as marcas deixadas por suas pegadas, declama:
“A desencanto, opóngase deseo.
Superen el erre de revolución.
Restauren lo decrépto que veo,
pero déjenme el brazo de Maceo
y, para conducirlo, su razón”.

Como vocês sabem, Maceo foi um dos heróis da Primeira Guerra de independência de Cuba. Mais adiante, na última estrofe, conclui:
“Las fronteiras son ansias sin coraje.
Quiero que conste de una vez aqui.
Cuando las alas se vuleven herrajes,
es hora de volver a hacer el viaje
a la semilla de José Martí”.

 Bom, vamos a mais um ano. Coragem!

Disponível em:
http://boitempoeditorial.wordpress.com/2013/01/16/te-doy-una-cancion-ii-54-aniversario-da-revolucao-cubana/

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

De como o cinema pensa e a filosofia se estremece

Julio Cabrera


Em torno do ano 1995, eu tentava pela primeira vez vincular as minhas duas mais antigas paixões, o cinema e a filosofia. A literatura serviu de mediação. Pensei muito nestas relações no período de minha adolescência, quando era fortemente atraído pelas idéias de Sartre através de seus romances e peças, proporcionando-me elementos para pensar o mundo. Eu sabia que meu primeiro acesso à filosofia tinha sido literário, de maneira que devia existir uma dimensão do pensamento que era literariamente articulável.

Assim como a literatura, o cinema tinha acompanhado sempre a minha formação como pensador de uma realidade que me decepcionava profundamente, mas que me fascinava quando posta em imagens. Um encontro com Christian Metz em Córdoba, dando ele um curso sobre semiologia nos setenta, me impressionou vivamente, sobretudo no que se referia à possibilidade de ver o cinema como forma de pensamento. Em nossas línguas balbuciantes (eu não sabia quase nada de francês, e Metz estava tentando falar espanhol), esse curso deu-me subsídios que apenas décadas mais tarde eu me atreveria a organizar numa linha de investigação definida.

Comecei a escavar nesta pré-história, nessa vivencialidade anterior a meus estudos filosóficos sistemáticos na universidade. Fui juntando reflexões, lembrando filmes que tinham me impressionado, vinculando-os com meus pensamentos filosóficos paradigmáticos, com intuições que me atormentavam. Muitas coisas foram surgindo na minha imaginação conceptual, e o livro, após passar por muitas versões, foi no ano 98 para a editora Gedisa de Barcelona, que acabava de publicar a Crítica de la Moral Afirmativa(1996), e que editou finalmente o livro de cinema em 99 sob o título: Cine: 100 años de Filosofia. Una Introducción a la filosofía a través del análisis de películas. (O livro ganhou em seguida uma tradução para o italiano pela Mondadori, com o curioso título de Da Aristotele a Spielberg e, mais recentemente, uma tradução portuguesa pela Rocco, com o título O cinema pensa).

Eu penso que os filósofos tiveram, ao longo de toda a história, um problema mal resolvido com a exposição de pensamentos através de imagens e meios sensíveis, desde a República platônica até as análises habermasianas de Italo Calvino. É surpreendente como os filósofos do século XX que conviveram com o surgimento e posterior desenvolvimento do cinema, não tenham produzido reflexão filosófica específica sobre cinema e filosofia até as recentes obras de Deleuze (as tentativas anteriores de Bérgson, Merleau-Ponty, Benjamin, Adorno, etc, apesar de seu inegável interesse, sempre me pareceram decepcionantes, na medida em que o cinema era ali pensado sempre de maneira lateral). Penso que o cinema tem muito a dizer ao filósofo, inclusive muito mais do que Deleuze conseguiu dizer.

Como ficou antes exposto (ver Filosofia), vejo a filosofia indo de Kierkegaard a Carnap (é kierkarnapiana). A filosofia é, para mim, a totalidade do continuum, e não só os pólos. Parece-me que a literatura e o cinema, em virtude de suas formas expressivas (e mais além, inclusive, da inserção dessas práticas em contextos sociais e políticos "populares" como o cinema de Hollywood), conseguem driblar melhor as pressões sobre a exposição de idéias e sujeição a moldes representacionalistas, produtivistas e otimistas do mercado filosófico, tal como se apresentam na atual fábrica acadêmica de idéias. O que sustento é que a literatura e o cinema podem conseguir pensar o fluxo histórico-vivido (o pólo kierkegaardiano do continuum) sem sentir a necessidade de reduzi-lo à representação, ou a conceitos puramente intelectuais. Parece mais fácil carnapizar Heidegger do que Ridley Scott ou Milan Kundera. (Talvez seja esta uma das minhas últimas ingenuidades).

Não que os cineastas e escritores sejam mais lúcidos ou corajosos que os filósofos, mas que sua própria "linguagem" os conduz aonde eles mesmos talvez nem desejavam ir, obrigando-os a dizerem e mostrarem coisas que nem sonhavam. Um filme como ASSASSINOS POR NATUREZA, de Oliver Stone, consegue explorar o tema nietzscheano da naturalização dos valores de uma maneira situacional e intolerável, muito mais mergulhada na coisa mesma do que muitos inteligentes estudos sobre Nietzsche. Se filosofar for um tipo de movimento que se isenta da obrigação de ater-se a uma dada "tradição" (de Tales a Wittgenstein), o cinema e a literatura podem ser filosóficos a partir da própria força com que são capazes de gerar conceitos.
O cinema e a literatura podem ser filosóficos se aceitarmos que a linguagem, o estilo, a gramática da filosofia podem variar imensamente, desde o poema filosófico até a exposição more mathematico, o ensaio e o aforismo: a filosofia não está condenada a um único estilo expositivo. E se aceitarmos que o filosofar esteve vinculado apenas contingentemente com uma tradição, pensadores ou artistas ou estudiosos de outras tradições podem pensar o real e articulá-lo em conceitos, ou mostrá-lo em sua vivencialidade histórica, mesmo fora dessa tradição. Se filosofar consiste em dizer idéias sobre a condição humana, a moral, a linguagem, etc, não há nada que condene estas problemáticas a uma forma escrita de exposição. É uma contingência histórica que as imagens, e não os textos escritos, não tenham sido escolhidas para constituir idéias filosóficas.

A minha idéia é que o cinema constitui um dos meios, não certamente o único, que gera conceitos de tipo logopático, conceitos cognitivo-afetivos, e que com essa abordagem de problemas o cinema contribui a problematizar os tratamentos tradicionais dados a problemas pela filosofia, na medida em que esta continua apática, ou seja, atrelada ao uso puramente intelectual de conceitos. Algo acerca da natureza e limites do pensamento filosófico, tal como hoje o entendemos, deverá ser colocado à luz destes estudos sobre cinema e filosofia. Mas, por outro lado, creio que também a filosofia escrita, em toda a sua historia, tem sido logopática sem querer assumi-lo abertamente, ou seja, tem pensado com a mediação inconfessa do afeto. Paralelamente, se pretendeu, muitas vezes, ver o cinema como um fenômeno puramente afetivo (de "impacto"), sem nada de cognitivo. As minhas noções de logopatía e conceito-imagem tendem a evitar estas dicotomias, desvelando a afetividade do intelecto e a cognitividade do afeto. A filosofia, dominada, em toda a sua tradição, desde a filosofia grega até o século XIX, pelo intelectualismo, só recentemente começou a sentir a necessidade de enriquecer a sua noção de racionalidade, repensando as relações tradicionais entre o intelectual e o afetivo-sensível.

Um fato fundamental foi o surgimento, dentro da história da filosofia, de pensadores histórico-existenciais aos que comecei a denominarlogopáticos, tais como Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger, e menos certamente, Hegel e Freud. Estes pensadores, embora em sentidos diferentes, pretenderam problematizar a tradição intelectualista em filosofia (sim, Hegel também, contra as monótonas Histórias da Filosofia que o apresentam como o grande “panlogista”, o intelectualista por excelência. Veja-se meu artigo “Acerca da controversa entre Hegel y Schopenhauer em torno das relações entre a vida e a verdade”), dando um lugar e uma dimensão diferentes para a componente afetiva e existencial do pensamento. Eles também pretenderam problematizar a linguagem mesma na qual a filosofia tinha sido exposta até então, tentando mostrar, por meio de novas formas expressivas, aquela dimensão não puramente intelectual do pensamento.

O surgimento dos pensadores logopáticos na história da filosofia numa data tão recente quanto o século XIX (e a sua conseqüente ocultação no século XX hiper-acadêmico), parece-me um fato de fundamental importância para pensar as relações entre cinema e filosofia, pois assinala para o fato de não ter sido apenas externa a imposição de estender os limites da forma e o conteúdo filosófico (como desafios vindos dos modernos meios de expressão visuais, tais como a fotografia e o cinema), mas também interna, uma necessidade da própria filosofia (como se os mesmos limites expressivos estivessem sendo visualizados e vividos, digamos, partindo de Hegel, de Musil e de Luchino Visconti). Os pensadores logopáticos mostraram que os próprios filósofos estavam dizendo suas idéias forçando os limites da linguagem escrita em suas possibilidades expressivas tradicionais, como tentando tornar "visuais" e "móveis" seus pensamentos, evitando as limitações da argumentação linear, tentando captar uma verdade temporalizada.

Se da própria filosofia surgia este novo impulso de arremeter contra os limites da linguagem, porque não seria legítimo tentar encontrar a mesma coisa partindo desde uma outra linguagem, desde um outro mediumexpressivo? Os experimentos dos filósofos logopáticos (o poema filosófico, a biografia, a frase especulativa, o aforismo), pareciam aproximá-los mais e mais dessas outras formas de expressão, tais como o cinema e a literatura, porém não para despojar a estas formas de suas clássicas pretensões de verdade e universalidade, mas para apresentá-las numa outra linguagem. Não que o cinema e a literatura removessem essas pretensões da filosofia mas, pelo contrário, que a filosofia as levava para o cinema e a literatura. Outra maneira de dizê-lo era afirmar que havia conceitos no cinema e na literatura, precisamente os que eu estava chamando deconceitos-imagem.

Publicações recentes nesta área são as seguintes:
“Recordando sem ira” (No livro BACK, Sylvio. A guerra dos pelados. Annablume, São Paulo, 2008).
“Para una des-comprensión filosófica del cine: el caso Inland Empire de David Lynch”.Revista enl@ce, Revista Venezolana de Información, tecnología y conocimiento. Año 2, mayo-agosto 2009.
“Eutanasia poética. Reflexões em torno de cinema e filosofia” (No livro: CUNHA, Renato. O cinema e seus outros. LGE, Brasília, 2009).


http://filosofojuliocabrera.blogspot.com.br/2011/08/cinema-e-filosofia.html

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Intelectuais e processos políticos


Emir Sader

O pensamento social latino-americano tem uma longa tradição, que cruzou praticamente todo o século passado, enganchado com os principais movimentos de transformação politica do século.

Historiadores marxistas escreveram, pela primeira vez, a história de nossos países e do continente, centrados nas formas que assumia o capitalismo aqui e não simplesmente como apêndice da história europeia. Economistas desvendaram as formas de inserção subordinadas de nossas sociedades como periferia do desenvolvimento do capitalismo europeu e norte-americano. Entre tantas outras contribuições, pensadores latino-americanos construíram um pensamento de vanguarda, que apontou as contradições, os dilemas, as perspectivas de nossos países ao longo de grande parte do século passado.

As transformações radicais pelas quais o mundo passou nas últimas décadas do século passado afetaram as condições da produção teórica, os próprios temas abordados prioritariamente e as correntes de pensamento predominantes. Em primeiro lugar, o fim do campo socialista fez com que alguns achassem que é necessário se resignar ao capitalismo e buscaram a melhor forma de se adequar a esse sistema.

Paralelamente, o liberalismo avançou e consolidou posições hegemônicas, em suas varias vertentes, tanto a econômica, quanto a política. Ao mesmo tempo – e não de forma acidental – aumentou o fechamento dos intelectuais acadêmicos dentro dos muros das universidades, com refúgio em temas fragmentários e sem transcendência politica na sua vida profissional.

Por outro lado, a mercantilização que o neoliberalismo promove em todos os poros da sociedade, produziu a mídia como espaço fundamental de formação da opinião pública, com seus “intelectuais” midiáticos, ao mesmo tempo que a partidarização da mídia fez com que deixasse de ser um lugar de debate de opiniões contraditórias.

A produção intelectual foi profundamente afetada por todos esses efeitos. Como resultado político mais geral, a intelectualidade hoje, no momento em que o Brasil e a América Latina vivem um momento de virada – prenhe de contradições e complexidades –, talvez não esteja à altura desse momento histórico. Não têm sido vanguarda desses processos mas, com raras exceções, têm estado marginados deles ou atrás dos problemas que esses novos processos latino-americanos enfrentam.

Disponível em:
http://boitempoeditorial.wordpress.com/2013/01/23/intelectuais-e-processos-politicos/

sábado, 16 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O que significa dizer: "não existem filósofos no Brasil"?

Júlio Cabrera

(continuação)


Após a primeira perplexidade que isto me produz, começo a pensar na melhor maneira de formular as minhas próprias idéias a respeito da questão. Vou arriscar aqui as seguintes teses:

(a) Eu creio que em todas essas análises é sistematicamente esquecido o motivo profundamente singular do ato de filosofar. Quando falo em singularidade, não me refiro a conteúdos pessoais, biográficos e privados do filósofo, mas à sua atitude pessoal de apropriação de idéias, que pode dar-se tanto num filosofar fortemente individual (tipo Kierkegaard) quanto em outro marcadamente social e público (tipo Marx) ou em outro acentuadamente erudito (tipo Husserl ou Heidegger), sem que essa singularidade da atitude deixe de manifestar-se em todos os casos. O filosofar próprio surge de uma personalidade que sofre determinados problemas (profundamente pessoais ou marcadamente públicos, mas sempre assumidos num ato próprio de pensamento) e que não pode evitar colocá-los em textos, escritos ou orais. Ele surge da própria vida do filósofo, tanto de seus tormentos pessoais quanto de suas perplexidades intelectuais e suas preocupações sociais.

(b) Alguém é filósofo por não poder evitar falar e escrever acerca do mundo numa determinada e singularíssima perspectiva. Alguém não começa a filosofar apenas porque sinta que as condições sociais e culturais do país onde vive chegaram a um ponto onde filosofar se tornou possível. O filosofar próprio surge de um impulso singular de expor o mundo de uma maneira inevitavelmente pessoal, mas que, de um modo o outro, apela para o humano, para o que afeta a todos. Isso não quer dizer que esse pensamento não reflita as suas origens e seus contextos sócio-culturais, pois é claro que vai refleti-los, inevitavelmente. Mas não é isso que deveria ser tematizado no momento de perguntar-se como é que esse pensamento próprio vai surgir.

(c) No Brasil e em muitos outros paises latino-americanos (e talvez também na Índia, o Japão e a África) tem-se a idéia de precisar-se de um longo "preparo" para gerar um pensamento próprio. Fala-se em "etapas" (por exemplo, o professor argentino de filosofia Francisco Romero estabeleceu uma longa formação por etapas, profusamente citada nas reflexões sobre filosofia em América Latina), tais como uma primeira etapa de aquisição de material de estudo (traduções, etc), uma segunda de elaboração de filosofia comentada e erudita, e, finalmente, uma de filosofia original e própria. Fala-se (e isso me deixa literalmente aterrorizado e deveria aterrorizar aos mais jovens) de queimar gerações e gerações de jovens filósofos em prol de uma geração que, finalmente, fará filosofia. Acredito que esta ideologia de que para filosofar se precisa de um grande "embalo" seja perigosamente destruidora e simplesmentefalsa. Para filosofar não se precisa de nenhum "embalo", nem queimar gerações, nem absolutamente nenhum "preparo" prévio: estamos já em condições de filosofar por contra própria, se tivermos a sensibilidade e a vontade de tentá-lo, o qual será sempre uma empreitada cheia de riscos de todo tipo (desde o risco ao ridículo até o risco da mediocridade).

Para dizer uma heresia, que ninguém aceitará: um filósofo, como eu o concebo, não precisa nem mesmo de bibliotecas nem de "boas traduções", nem de um "ambiente propício" nem de bolsas de estudos indefinidamente renováveis. Um filósofo se consolida também em oposição a suas falências. A falta de “condições” poderá colocar certas particulares dificuldades ao filosofar de um filósofo (como se diz que aconteceu, por exemplo, com Farias Brito), mas a presença de tais condições poderá colocar outras dificuldades (como me parece que acontece, de fato, na situação atual, na qual um Farias Brito talvez nem poderia fazer tudo que fez no século XIX).

(d) A minha última tese é que existem já filósofos brasileiros (e argentinos, e chilenos, e bolivianos e paraguaios. E indianos, e japoneses e africanos, pois como pode um povo existir sem filosofia?). O que não existe são os mecanismos, institucionais e valorativos, para poder visualizá-los. De nada serve que uma atividade exista se a lógica da distribuição de informação impede que as pessoas a vejam. Não me refiro, é claro, a uma questão técnica, porque a Internet permite hoje visualizar tudo, e inclusive coisas demais, mas à própria lógica de seleção de autores e de temas, ao direcionamento institucional através de programas, curricula, mecanismos de autoridade, orientação e aconselhamento. A “existência” de algo passa pela política da informação: a ontologia foi informatizada. Hoje nós temos um aparato de informação que nos permite visualizar todo tipo de trabalhos alemães e norte-americanos, mas que nos impede a visualização de grandes esforços reflexivos sul-americanos. Todo mundo conhece Mortal Questions, de Thomas Nagel, mas poucos conhecem aMetafísica de la Muerte, de Agustin Basave Fernandez, 14 anos anterior ao livro de Nagel, seja qual for a opinião que tivermos dessas obras.

A "não existência" de filosofia no Brasil (e em muitos outros países) é um efeito produzido pela particular distribuição da informação hoje dominante no mundo, pela particular estrutura das instituições de ensino e de pesquisa, e por idéias unilaterais do que seja ter ou não valor como filosofia. Alterando estas condições, começaremos a "ver" os nossos filósofos, ou seja, quando deixarmos de buscá-los nos lugares errados e com as imagens e expectativas erradas.

(e) Embora condições sociais e culturais não possam, segundo me parece, propiciar ou explicar o surgimento de um pensamento filosófico criador e próprio, essas condições poderão contribuir para este pensamento NÃO se manifestar. Apesar dos filósofos genuínos acabarem exprimindo-se e gritando suas filosofias apesar de tudo, em muitos casos isso se torna tremendamente difícil. A Dinamarca da época de Kierkegaard não fez nada para Kierkegaard surgir, mas tampouco fez nada para impedi-lo. Eu acredito que isso não aconteça atualmente no Brasil, porque as condições institucionais longe de favorecerem o surgimento de filósofos, na verdade podem estar afogando-os e eliminando-os antes mesmo deles nascerem.
A queixa da “falta de filósofos no Brasil” é, assim, largamente inconsciente dessa falta ser gerada pelo próprio mecanismo de produção e avaliação brasileiro de filosofia. Não é um fenômeno “objetivo”.

 disponível em:
http://filosofojuliocabrera.blogspot.com.br/2011/08/filosofia-no-brasil.html

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O que significa dizer: "não existem filósofos no Brasil"?

Júlio Cabrera


Muitos leitores poderiam sentir o impulso de dispensar este item por achar que a filosofia é simplesmente filosofia, e que não tem cabimento colocar questões sobre “filosofias nacionais”. A isto respondo que estou de acordo, e que não gosto de colocar esta questão, mas que colocá-la é uma resposta a uma situação já instalada: filósofos brasileiros não são estudados nos curricula de filosofia, nem mesmo mencionados, nem são apresentados em congressos e conferências (salvo em grupos específicos de estudiosos de filosofia no Brasil, com o qual os filósofos nacionais são como encerrados em campos de discussão restritos) e uma grande parte da comunidade acadêmica está convencida de que não existem filósofos no Brasil. Podemos ter a impressão deles estarem sendo excluídos por serem brasileiros, salvo que se demonstre que nenhum deles pensounada de valor. É por isso que somos obrigados (a contragosto) a colocar a questão, precisamente porque a filosofia é simplesmente filosofia (ou deveria sê-lo), sem considerações de nacionalidade.

Tanto os que não acreditam na possibilidade de uma “filosofia brasileira” (os "universalistas" ou "internacionalistas"), quanto os que acreditam (os "independentistas"), sempre colocam toda a questão em termos sociais e institucionais. Os primeiros pensam que deve criar-se uma comunidade de estudiosos de textos, de bons comentadores e conhecedores de filosofia clássica e moderna, capazes de gerar papers e livros que possam concorrer dignamente no plano internacional. Essa deve, segundo eles, ser considerada como a contribuição brasileira à filosofia. Alguns deles não vêem qualquer sentido na questão de se tal tipo de prática filosófica acaba gerando ou não um pensar "genuinamente brasileiro", enquanto outros apostam numa continuidade às vezes difícil de compreender, entre essas atividades eruditas e o nascer de um pensamento original brasileiro. A ideologia universalista parece-me hoje predominante entre os professores.

Por outro lado, os escassos críticos da filosofia acadêmica acham que devem criar-se condições sociais, culturais e mesmo institucionais que favoreçam um pensamento original e criador, devendo-se lutar contra o colonialismo ainda presente nas mentes dos pensadores brasileiros, que os leva a copiar moldes externos em lugar de pensar por si mesmos. Em ambos os casos, o problema do filosofar original e criador é pensado dentro dos termos de uma preparação sócio-cultural e institucional que permitiria seu desenvolvimento: do ponto de vista universalista, devem-se preparar gerações de eruditos e comentadores, criando-se então uma comunidade de contribuidores à filosofia internacional; do lado independentista, deve-se criar uma "massa crítica" (para usar o jargão) capaz de "sacudir" as estruturas da dependência cultural e preparar as condições para um pensamento independente.

Eu fico perplexo com este tipo de abordagem! Pois ela sugere que um filósofo deve ser o produto de algum ambiente sócio-político-cultural favorável, de tal forma que, dadas certas condições, o filósofo surgirá. Daí que os professores gastem muito tempo falando de "condições sociais e culturais" da criação de filosofia, das condições da formação filosófica no atual contexto cultural, do número de traduções existentes, da criação de pós-graduações de nível, e assim por diante, como se estas questões fossem as decisivas para a gestação de um pensamento filosófico autêntico e criador no Brasil, como se a partir de condições sociais determinadas fosse surgir um autêntico filósofo.


(continua)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Charles Ebbets


Almoço no topo de um arranha-céu em construção, fotografia de Charles Ebbets, 1932.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #7

Bertrand Russell

(continuação)
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que persiste durante longo tempo - tem a sua parte de razão e a sua parte de equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado, a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos, vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida, somente o futuro poderá demonstrá-lo.

In Russell, B. (1977): História da Filosofia Ocidental, Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #6

Bertrand Russell

(continuação)
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo, dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados, após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a origem do "quakerismo". Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.

A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à "sensibilidade" começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.

O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores. Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente agradáveis.

Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão contrário ao "entusiasmo" - o individualismo dos anabatistas como à autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e que resulta a adoração do Estado.

Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando, portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente, que a felicidade não constitui o bem, mas que a "nobreza" ou o "heroísmo" devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.

(continua)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #5

Bertrand Russell

(continuação)
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha, se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.

Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela Reforma. r1 Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade. Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na maior parte da Europa Setentrional.

A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica; sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente, romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes à Igreja - mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.

Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia, no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando, depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez social.

A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum cotidiano.

(continua)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #4

Bertrand Russell

(continuação)
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou rapto. É possível que os monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos, submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.

Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última consideração foi decisiva.

A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém - principalmente entre os frades franciscanos - havia alguns que, por várias razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.

Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N o período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos f atos recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico expoente da época.

Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada, em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares. Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de sentir dos homens, como jamais exercera antes - influência essa que, progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade da civilização.

Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral, tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas - de coesão social.

(continua)

domingo, 3 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #3

Bertrand Russell

(continuação)
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.

O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o seu dever para com o Estado. A opinião de que "devemos obedecer mais a Deus que ao homem", como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino, permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou do Cristianismo de Constantinopla. Mas no Ocidente, onde os imperadores católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda hoje.

A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu, em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em 1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano de Justiniano.

Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália, França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI ), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental, formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano 1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi, também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o que havia de mais civilizado no presente.

(continua)

sábado, 2 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #2


Bertrand Russell

(continuação)
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas, Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis. Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar àqueles que a estudam.

A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250). Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do que a Igreja.

A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência, acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a restrições impostas pelo Estado. 0 pensamento grego, até Aristóteles, é dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político. Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social, durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, f oi assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força - primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos, primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado. Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.

(continua)