1.1 – VIGÍLIA E SONO
Donaldo Schuler
Heráclito,
ao dizer que o oráculo de Delfos não declara nem oculta mas significa, define,
com certeza, o seu próprio discurso. Sentindo a insuficiência do sistema
lingüístico para desvendar o mistério do mundo, desenvolveu uma linguagem
ambígua, alusiva, multissignificativa, apta a apanhar a complexidade da
realidade apenas entrevista, discurso que gera outros discursos em corrente sem
fim determinável.
Traduzir
Heráclito é entrar num jogo em que as imagens se multiplicam, jogo de ondas,
efêmeras, vivas. A infidelidade necessária da tradução abre distâncias em que
os significados cambiantes se movem, cavando leitos imprevistos no fluir
universal. Entremos no jogo sem detê-lo, sem receio de deslizes, mas com a
firme determinação do lance adequado.
Embora
seja este o discurso, sempre, os
homens
tardam, não só antes de ouvi-lo, como
logo
que o ouviram; pois, mesmo que todas
as
coisas aconteçam de acordo com este discurso,
mostram-se
semelhantes a inexperientes
ao
experimentarem tais palavras e atos que
eu
persigo segundo a natureza distinguindo
cada
coisa e mostrando como ela é. Mas os
outros
homens ignoram o que fazem depois
de
acordarem, como esquecem o que fazem
dormindo
(B1)
Que
discurso é esse que não redime os homens da ignorância? Que fazer com o
advérbio aei (sempre)? Os homens sempre tardam ou o discurso sempre é?
Por que decidir o que Heráclito quer indeciso? Conservemos sempre na
indecisão; na indecisão sempre declara a continuidade do acontecer e do permanecer
aquém. Discurso? O universal ou o de Heráclito? Provoquemos, atentos ao
pensador, a convergência de interpretações divergentes. Nosso discorrer se
resolve no estar aquém não só do Discurso, o Discurso dos discursos, como
também dos discursos em curso (o de Heráclito e o de outros) antes e depois de
os termos ouvido. O Discurso e os discursos excedem-nos como processo de
organização. Na impossibilidade e na obstinação de os alcançar, produzimos
novos discursos, que no excesso têm o destino dos primeiros, e continuamos irremissivelmente
imersos no acontecer da ignorância. Tardos, acontecemos na ignorância e fazemos
a ignorância acontecer, o nosso inapelável caminho. Chegamos a estas reflexões,
derivando o adjetivo aksynetos (tardo), de a-ksyn-iemai (não ir
com, não acompanhar, ficar aquém da verdade, ouvir o apelo do Discurso sem
entendê-lo. O adjetivo verbal em -tos só existe em derivados; aksynetos
é um que não se apressa, não deseja empreender.) Como sempre, discurso
é ambíguo, tanto pode ser o Discurso dos discursos como pode designar um
dos discursos, o de Heráclito, por exemplo. Observe-se, entretanto, a diferença
entre um discurso e o Discurso. Um discurso e o Discurso não coincidem, nem se
repelem. O Discurso atravessa cada um dos discursos; neles o vemos e o
perdemos. Não acontecemos apenas nós, também as coisas acontecem de acordo com
o Discurso, acordo que não é coincidência, acordo que vem de desacordos sem os
quais nenhum acordo se veria celebrado.
A
inexperiência no Discurso não significa a falta de iniciação em qualquer
discurso. O apego indevido a discursos retarda o acesso ao Discurso. Há
discursos que prendem, fecham a passagem a outros discursos. São assim os
discursos míticos na vigência do mito. Heráclito pensa, quem sabe, nos devotos
aos mundos criados por Homero e Hesíodo. Palavras (epea) são epopéias?
Atos (erga) são ritos através dos quais o homem procura passagem ao que
o excede? O discurso de Heráclito agride como exposição, propõe o que outros
discursos retêm. Se discursos têm a virtude de expor, não lhes falta a
tenebrosa qualidade de impor, contradição alojada no bojo da exposição. Nenhum
discurso retém a exposição sem prejuízo. Heráclito ataca a crosta endurecida de
discursos que, negando-se como tais, tendem a absolutizar-se, evadidos do
fluxo. O pensador afronta as couraças para surpreender o que elas encobrem.
Faz-se obscuro para desencadear o que vive nas sombras, a natureza que acontece
e faz acontecer. A forma verbal diegeumai ou diegeomai (persigo),
derivada de hegemon, chefe de tropas, tem ressonância militar.
Isso não surpreende num autor para quem o conflito é o pai de todas as coisas.
Adversário de Homero, Heráclito apresenta-se como diegeta, narrador épico de
uma campanha de que ele próprio é protagonista. O exército que o acompanha terá
que distinguir (diaireon) em unidades forças conflitantes. Nessa
empresa, todos são inexperientes já que procedem de um mundo, o mítico, em que
se raciocinava diferentemente. Os que marcham avançam como quem desperta.
Heráclito dispõe-se a dizer como as coisas são, desfeito o véu da noite que as
revestia. Os que o ouvem devem contentar-se, entretanto, com uma exposição
lenta, visto que o expositor não apresenta como os aedos fatos concluídos.
Heráclito expõe as coisas à medida que as descobre. Mesmo assim, não as dá como
prontas. Para acompanhar a exposição cada ouvinte terá que rever o que lhe é
mostrado. Os resultados da investigação de homens que despertam só tocam a
despertos. O método é revolucionário: em lugar do passado, o presente,
investigação em lugar de cantos conclusivos, tarefa em andamento de que se
ignora o fim. Do canto e da dança vai-se à fala, ao andar atento; do dizer das
musas, ao Discurso – sem sujeito nem objeto –, o de sempre, fonte de todos os discursos.
Redimidos
de narrativas míticas e de cerimônias rituais, palavras e atos são cuidadosamente
examinados. Ao contrário dos pensadores preocupados em refletir sobre o
fundamento, Heráclito detém-se naquilo que nos toca os ouvidos, os olhos, a
língua, a pele. O sentido encontra-se no que sentimos. Quem fala não enuncia as
regras que tornam o enunciado inteligível, entretanto, a gramática está
presente em cada partícula do que dizemos. A gramática é o discurso. Como
existem gramáticas regionais dentro da gramática geral, há o Discurso e os
discursos. O universo de Heráclito é vivo, coisas meramente coisas não há.
Todas as coisas e todas as palavras são atos: atos de fala, atos do Discurso. O
discurso de Heráclito tem a vantagem de vencer as fronteiras do discurso
particular em direção ao Discurso que excede todos os discursos e os apóia,
Discurso oculto na natureza que oculta. Atento ao discurso, tanto o já muitas
vezes dito quanto o ainda não proferido, Heráclito empreende o exame. O Discurso
gera o que é e o que se diz. Gerando, restaura o movimento daquilo que
propendia à rigidez letal.
Outros
homens, não despertos como Heráclito, dormem no sono e na vigília. Afundados no
sono, escapam-lhes as experiências cotidianas e suas urgências. Não vivem
adormecidos os que buscam em agentes míticos explicação para os eventos?
Acordados,
agem
como se nada vissem. Com que motivo considerar desperto o homem que cuida
apenas dos seus interesses sem procurar compreender o mundo como um todo, sem
prestar atenção à relação entre as inumeráveis experiências cotidianas? Não
contentes com palavras, os despertos perguntam pela gramática. A gramática só
se desvela a vigilantes. Só eles podem avaliar, julgar, dizer.