sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O que significa dizer: "não existem filósofos no Brasil"?

Júlio Cabrera

(continuação)


Após a primeira perplexidade que isto me produz, começo a pensar na melhor maneira de formular as minhas próprias idéias a respeito da questão. Vou arriscar aqui as seguintes teses:

(a) Eu creio que em todas essas análises é sistematicamente esquecido o motivo profundamente singular do ato de filosofar. Quando falo em singularidade, não me refiro a conteúdos pessoais, biográficos e privados do filósofo, mas à sua atitude pessoal de apropriação de idéias, que pode dar-se tanto num filosofar fortemente individual (tipo Kierkegaard) quanto em outro marcadamente social e público (tipo Marx) ou em outro acentuadamente erudito (tipo Husserl ou Heidegger), sem que essa singularidade da atitude deixe de manifestar-se em todos os casos. O filosofar próprio surge de uma personalidade que sofre determinados problemas (profundamente pessoais ou marcadamente públicos, mas sempre assumidos num ato próprio de pensamento) e que não pode evitar colocá-los em textos, escritos ou orais. Ele surge da própria vida do filósofo, tanto de seus tormentos pessoais quanto de suas perplexidades intelectuais e suas preocupações sociais.

(b) Alguém é filósofo por não poder evitar falar e escrever acerca do mundo numa determinada e singularíssima perspectiva. Alguém não começa a filosofar apenas porque sinta que as condições sociais e culturais do país onde vive chegaram a um ponto onde filosofar se tornou possível. O filosofar próprio surge de um impulso singular de expor o mundo de uma maneira inevitavelmente pessoal, mas que, de um modo o outro, apela para o humano, para o que afeta a todos. Isso não quer dizer que esse pensamento não reflita as suas origens e seus contextos sócio-culturais, pois é claro que vai refleti-los, inevitavelmente. Mas não é isso que deveria ser tematizado no momento de perguntar-se como é que esse pensamento próprio vai surgir.

(c) No Brasil e em muitos outros paises latino-americanos (e talvez também na Índia, o Japão e a África) tem-se a idéia de precisar-se de um longo "preparo" para gerar um pensamento próprio. Fala-se em "etapas" (por exemplo, o professor argentino de filosofia Francisco Romero estabeleceu uma longa formação por etapas, profusamente citada nas reflexões sobre filosofia em América Latina), tais como uma primeira etapa de aquisição de material de estudo (traduções, etc), uma segunda de elaboração de filosofia comentada e erudita, e, finalmente, uma de filosofia original e própria. Fala-se (e isso me deixa literalmente aterrorizado e deveria aterrorizar aos mais jovens) de queimar gerações e gerações de jovens filósofos em prol de uma geração que, finalmente, fará filosofia. Acredito que esta ideologia de que para filosofar se precisa de um grande "embalo" seja perigosamente destruidora e simplesmentefalsa. Para filosofar não se precisa de nenhum "embalo", nem queimar gerações, nem absolutamente nenhum "preparo" prévio: estamos já em condições de filosofar por contra própria, se tivermos a sensibilidade e a vontade de tentá-lo, o qual será sempre uma empreitada cheia de riscos de todo tipo (desde o risco ao ridículo até o risco da mediocridade).

Para dizer uma heresia, que ninguém aceitará: um filósofo, como eu o concebo, não precisa nem mesmo de bibliotecas nem de "boas traduções", nem de um "ambiente propício" nem de bolsas de estudos indefinidamente renováveis. Um filósofo se consolida também em oposição a suas falências. A falta de “condições” poderá colocar certas particulares dificuldades ao filosofar de um filósofo (como se diz que aconteceu, por exemplo, com Farias Brito), mas a presença de tais condições poderá colocar outras dificuldades (como me parece que acontece, de fato, na situação atual, na qual um Farias Brito talvez nem poderia fazer tudo que fez no século XIX).

(d) A minha última tese é que existem já filósofos brasileiros (e argentinos, e chilenos, e bolivianos e paraguaios. E indianos, e japoneses e africanos, pois como pode um povo existir sem filosofia?). O que não existe são os mecanismos, institucionais e valorativos, para poder visualizá-los. De nada serve que uma atividade exista se a lógica da distribuição de informação impede que as pessoas a vejam. Não me refiro, é claro, a uma questão técnica, porque a Internet permite hoje visualizar tudo, e inclusive coisas demais, mas à própria lógica de seleção de autores e de temas, ao direcionamento institucional através de programas, curricula, mecanismos de autoridade, orientação e aconselhamento. A “existência” de algo passa pela política da informação: a ontologia foi informatizada. Hoje nós temos um aparato de informação que nos permite visualizar todo tipo de trabalhos alemães e norte-americanos, mas que nos impede a visualização de grandes esforços reflexivos sul-americanos. Todo mundo conhece Mortal Questions, de Thomas Nagel, mas poucos conhecem aMetafísica de la Muerte, de Agustin Basave Fernandez, 14 anos anterior ao livro de Nagel, seja qual for a opinião que tivermos dessas obras.

A "não existência" de filosofia no Brasil (e em muitos outros países) é um efeito produzido pela particular distribuição da informação hoje dominante no mundo, pela particular estrutura das instituições de ensino e de pesquisa, e por idéias unilaterais do que seja ter ou não valor como filosofia. Alterando estas condições, começaremos a "ver" os nossos filósofos, ou seja, quando deixarmos de buscá-los nos lugares errados e com as imagens e expectativas erradas.

(e) Embora condições sociais e culturais não possam, segundo me parece, propiciar ou explicar o surgimento de um pensamento filosófico criador e próprio, essas condições poderão contribuir para este pensamento NÃO se manifestar. Apesar dos filósofos genuínos acabarem exprimindo-se e gritando suas filosofias apesar de tudo, em muitos casos isso se torna tremendamente difícil. A Dinamarca da época de Kierkegaard não fez nada para Kierkegaard surgir, mas tampouco fez nada para impedi-lo. Eu acredito que isso não aconteça atualmente no Brasil, porque as condições institucionais longe de favorecerem o surgimento de filósofos, na verdade podem estar afogando-os e eliminando-os antes mesmo deles nascerem.
A queixa da “falta de filósofos no Brasil” é, assim, largamente inconsciente dessa falta ser gerada pelo próprio mecanismo de produção e avaliação brasileiro de filosofia. Não é um fenômeno “objetivo”.

 disponível em:
http://filosofojuliocabrera.blogspot.com.br/2011/08/filosofia-no-brasil.html

Um comentário:

Anderson Lara disse...

Sensacional seu artigo. Realmente não existem filósofos característicos no Brasil. Mas existe sim filósofos no Brasil, aqueles que realmente fazem filosofia, (ao contrário dos formados pelas universidades, que apenas conhecem e estudam a filosofia dos verdadeiros filósofos, sendo estes, meros analistas e historiadores da filosofia).Porém os que praticam a filosofia no Brasil, não detém a alcunha "filósofo". Fato que pode ter como uma de suas principais causas, a questão dos costumes nesta cultura "desembestada", atordoada do Brasil.