quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A Filosofia entre a Religião e a Ciência #6

Bertrand Russell

(continuação)
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo, dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas, chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados, após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a origem do "quakerismo". Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna, embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.

A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à "sensibilidade" começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.

O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores. Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente agradáveis.

Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão contrário ao "entusiasmo" - o individualismo dos anabatistas como à autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes, Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e que resulta a adoração do Estado.

Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando, portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente, que a felicidade não constitui o bem, mas que a "nobreza" ou o "heroísmo" devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas, contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.

(continua)

Nenhum comentário: