(continuação)
O
poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem
teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições
que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a
essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos conquistadores,
tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e sem espírito. O
rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal, mas todos
esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando, uma
explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem ou
rapto. É possível que os monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente
piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de
paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranqüila
regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às
vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo,
se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que
deveriam eles, com seus exércitos de altivos, submeter-se ás ordens de homens
letrados, dedicados ao celibato e destituídos de forças armadas? Apesar da
desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas por
meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes, num
acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.
Toda a
força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja saiu
vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o
monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente que
a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A
tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial da
Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no romance,
no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo intelectual,
pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A filosofia
explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas apenas do
pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém - principalmente entre os
frades franciscanos - havia alguns que, por várias razões, estavam em desacordo
com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos alguns séculos
antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que procurou fundar
uma nova religião, representa o extremo da cultura antipapista; Tomás de
Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo,
continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de
cinqüenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única
exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.
Depois
de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese filosófica
medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade de ordem e
perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se ocupasse, era
colocada com precisão em relação com o que constituía o seu cosmo bastante
limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e o papado da
renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do Cristianismo e a
teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N o período da
Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da superfície da
terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que passaram a ser
considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico atribuiu á terra e
ao homem uma posição mais humilde do que aquela que haviam desfrutado na teoria
de Ptolomeu. O prazer pelos f atos recentes tomou o lugar, entre os homens
inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir sistemas. Embora a
Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem, prefere, quanto ao
que diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido,
Montaigne é o mais típico expoente da época.
Tanto
na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre um
colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada, em sua ideologia,
pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do poder político. Todo
poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou poder ao Papa nos
assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares. Mas tanto o Papa como
o Imperador perderam sua importância durante o século XV. O Papa tornou-se
simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado no jogo incrivelmente
complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As novas monarquias
nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus próprios territórios,
um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam interferir. O Estado
nacional, devido, em grande parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o
pensamento e o modo de sentir dos homens, como jamais exercera antes - influência
essa que, progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à
unidade da civilização.
Essa
desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de Maquiavel. Na
ausência de qualquer princípio diretivo, a política se transformou em áspera
luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos quanto à maneira de se
participar com êxito desse jogo. O que já havia acontecido na idade de ouro da
Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios morais tradicionais
desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à superstição; a
libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e criadores, produzindo
um raro florescimento do gênio mas a anarquia e a traição resultantes,
inevitavelmente, da decadência da moral, tornou os italianos coletivamente
impotentes, e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações menos civilizadas
do que eles, mas não tão destituídas - de coesão social.
(continua)
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