Laurenio Sombra
(continuação)
Mas o que pode resultar de tudo isso? Naturalmente, é imprevisível o
resultado. Pode ser, como alguns temem, que as manifestações ganhem um caráter
cada vez mais difuso ou, pior, ganhe cores até mesmo reacionárias. Mas com a
força que elas apresentaram não custa desejar que comecem a lutar por pautas
específicas, mas legítimas. E entra, rapidamente, a “proposta” que prometi no
título desse ensaio. Se o único ponto que unifica a difusão das manifestações é
o incômodo político, uma pauta que poderia unificar as energias seria
exatamente de uma reforma política.
Creio que uma reforma política teria de atacar, acima de qualquer ponto, ao
menos dois elementos essenciais.
O primeiro é o financiamento privado de campanhas. O pressuposto de um
sistema efetivamente democrático é de que candidatos e partidos sejam
representantes da população que os elege. O financiamento privado cria, na
prática, uma espécie de “dupla representatividade”. Por qual motivo empresas e grandes empresários
financiam a campanha de determinados candidatos e partidos, senão pelo fato de
que esperam algo em troca? Esse “algo” pode ser lícito ou ilícito, mas
dificilmente será legitimo, uma vez que um princípio básico da administração
pública, a impessoalidade, já foi previamente rompido desde o financiamento.
Somado a isso, as propagandas políticas ganharam caráter tão comercial, com
grandes campanhas midiáticas e grandes investimentos em empresas de marketing,
que o candidato que não tiver tal financiamento já está, desde o início, em
forte desvantagem na campanha, independente da qualidade de suas propostas e da
potencial ressonância delas junto à população. O financiamento público exclusivo das campanhas políticas me parece
elemento essencial para que o poder econômico reduza a sua capacidade de
intervenção na política. Para quem alega, não sem algum cinismo, que nada
mudaria, pois isso não impediria o “caixa dois”, eu respondo que o financiamento
público deve ser acompanhado de regras eleitorais que reduzam a possibilidade
de “espetacularização” das campanhas (como caríssimos “showmícios” e produções
televisivas). Medidas como essas não evitariam, de todo, mas evitariam mais. O
outro aspecto é que a criminalização do financiamento privado colocaria
financiadores e políticos desviantes em condição mais fragilizada que no “caixa
dois” atual.
Outro elemento essencial é a necessidade de transformação da matemática
eleitoral. É fundamental, para que o poder legislativo seja minimamente
representativo, que haja uma simplificação das regras de modo que permita uma
identificação maior do eleitor com o candidato/partido votado, e que seja
permitido a ele algum nível de acompanhamento, bem ao candidato/partido uma
sensação de ser mais vigiado, como já acontece com o poder executivo. Aqui, há
divergências sobre caminhos a trilhar. Pessoalmente, sou favorável e acho que
ainda não foi compreendida a proposta, que já surgiu no Congresso e já é
realidade em outros países, do “voto em
lista”. Nessa modalidade, se vota sobretudo no partido e não em candidatos
isolados. Cada partido apresenta, antes, sua “lista” de candidatos que incluirá
no Congresso, a depender do número de votos recebidos. O eleitor continua
sabendo nomes possíveis que ocuparão o Congresso (se o partido apresentar uma
lista ruim, o eleitor pode simplesmente não votar nele), mas acima de tudo
acaba a multiplicação de nomes que faz com que votemos em candidatos como quem
escolhe produtos em supermercado. Com o tempo, o voto em lista tende a
identificar cada vez mais o eleitor com determinado partido (posição que também
muda, naturalmente, com as eventuais decepções) e a possibilitar uma cobrança
maior com relação às posições adotadas. Uma alternativa ao voto em lista é o voto distrital. Em cada distrito, se
vota em um candidato numa mini eleição majoritária, o que também permite a
identificação. A desvantagem dessa proposta é que o candidato eleito (digamos,
para Deputado Federal) tende a adotar pautas excessivamente locais para
conquistar o eleitor do seu distrito. Por isso, alguns propõem eleições com
voto distrital misto.
De todo modo, há alguns pontos essenciais que só serão mudados numa
reforma política. Fala-se na reforma política há muitos anos, e ela nunca
ocorre, por um motivo básico: não interessa à maior parte dos parlamentares
eleitos com as regras atuais mudá-las, vivemos um impasse prático diante disso.
Mas as manifestações podem ser uma oportunidade ímpar: e se os manifestantes
canalizassem a energia dos seus protestos e a profunda insatisfação com as
instituições políticas para pressionar o Congresso Nacional para o
estabelecimento de uma assembleia
constituinte específica para uma reforma política? Essa cobrança poderia
ter uma pauta específica: os parlamentares eleitos para a assembleia
constituinte seriam eleitos de forma simples, sem quociente eleitoral (os “n”
mais votados formariam o corpo constituinte), eles poderiam fazer ou não parte
de algum partido, e poderiam compartilhar um espaço em comum (por exemplo, a
televisão) para dizer por que deveriam ser eleitos para compor essa assembleia.
Uma vez eleitos, naturalmente, a pressão popular teria de continuar, para que
se fizesse uma reforma política efetivamente democrática.
Depois que eu já havia iniciado esse texto, influenciado por discussões
que já haviam começado a acontecer no Congresso, a proposta da constituinte,
com consulta popular, foi apresentada pela presidenta Dilma, embora sem o
detalhamento que apresentei. Tem havido grande discussão sobre a sua
possibilidade e a sua constitucionalidade. Não tenho elementos jurídicos para
discutir isso, mas entendo como essencial ressaltar que permanece o fundamento
político aqui posto, mesmo que modificações sejam feitas para se adequar a regras
da nossa constituição. Permanece, acima de tudo, o princípio de que qualquer
transformação do nosso modelo político provavelmente só ocorrerá a partir de
forte pressão popular.
Alguns poderiam questionar que essa proposta, por mais que represente um
avanço, ainda está no âmbito da já desgastada democracia representativa. Queremos agora, diriam, democracia direta, isto é, participação
direta da população no processo decisório. A discussão da democracia direta é
longa e interessante, e vai de, pelo menos, Rousseau a, mais recentemente,
Chantal Mouffe e Ernest Laclau. Se democracia direta pressupõe mais mecanismos
de participação popular (leis propostas pelos cidadãos, mais referendos,
aprovação da própria constituição por votação, etc.), diversas dessas regras
podem ser estabelecidas na reforma política, e elas serão tanto mais
democráticas quanto mais decorrentes de pressões populares. Mas isso não
pressupõe um fim da democracia representativa, e essa ainda parece ter um papel
a cumprir. “Democracia direta” também já foi proposta adotada para justificar
tiranias, e nos cabe evitar esse caminho.
Assim, cabe aos manifestantes, canalizarem suas energias em propostas
cada vez mais concretas. Os manifestantes brasileiros não precisam seguir o
beco sem saída das ruas europeias e americanas, que criaram uma bela fonte de
protesto, mas não foram capazes de dar o próximo passo. Talvez possamos nos
aproximar, digamos, da energia do povo egípcio, que iniciou uma transformação
efetiva do seu país a partir da ocupação das praças. É verdade que as eleições,
por lá, não se deram conforme se desejava. Mas ninguém quer voltar ao estado
anterior, apenas avançar.
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