sábado, 15 de dezembro de 2012

A suprema justiça do espetáculo: o mensalão, o circo e nenhum pão


por: Mauro Iasi

Sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa (…)
Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana.

Guy Debord
Desde tempos imemoriais os seres humanos representam, isto é, transpõem a vida ao ritual, ao símbolo, à imagem, para olhá-la como num espelho e tentar reconhecer-se. No entanto, como nos explica Bakhtin, o signo não é uma simples reapresentação do real, ele reflete e refrata o real representado. No caso do ritual da justiça, o espetáculo não é mera expiação social do dano causado, ela é mais que isso, é catarse.

Os meios de comunicação transmitiram o espetáculo do julgamento do mensalão com o rigor do rito jurídico e com as sutilezas da performance circense, com direito a mágicos e suas capas e uma profusão de coelhos que saltavam de cartolas/pastas, equilibristas navegando de maneira instável em uma tênue linha que separa a verdade da ficção. Malabaristas jogavam suas palavras, termos jurídicos, citações filosóficas, tipificações do ato delituoso, atenuantes, impropérios e, lógico, os palhaços, esses artistas incompreendidos e adorados, com suas roupas extravagantes e enormes sapatos que distraem a atenção do público enquanto os funcionários trocam os cenários.

Inútil procurar os fatos, a sagrada verdade, sobre os entulhos de processos e recursos. Ela é o que menos importa, pois no espetáculo “tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação”, nos diz Debord (A sociedade do Espetáculo, Rio de Janeiro, Contraponto: 1997, 13).

O espetáculo é a afirmação da aparência, mas aparência não é falsidade que encobre um real, é a forma necessária de expressão deste real, nos termos de Marx a expressão invertida de um mundo invertido. O fato que origina a ação jurídica tem que se tornar abstrato para ser julgado, ele deixa de ser um ato que fere uma ou outra pessoa, ou as pessoas em seu conjunto como sociedade, mas deve ser tipificado como ação contrária a determinado preceito legal. Na abstração da norma positivada, o fato se vê e se reconhece, ou não, mas não pelo que é em si mesmo, mas pela habilidade dos advogados em reconstruí-lo para que se encontre nos termos abstratos da lei, ou dela destoe.

Desta maneira, o espetáculo jurídico, assim como todo espetáculo, assume uma forma tautológica, uma vez que “seus meios (são), ao mesmo tempo, seu fim” (idem, 17). Quando se chega ao fim do julgamento, a sentença proferida, a justiça é feita. Realiza-se lá, no espaço jurídico, o que deixou de se realizar no campo social onde se deu o fato. Este é o mecanismo primordial da catarse. Na vida tudo é muito complicado, as contas não fecham, nossos amores viram desamores, nossos carros não sobem montanhas, ficam presos no engarrafamento, nosso cigarro vira câncer de laringe; mas, na novela os casais se encontram, normalmente no último capítulo, e, no que nos interessa, os culpados são punidos e a justiça é feita.

É, no entanto, inegável que ao projetarmos a realização do desejo no outro sentimos em nós uma realização indireta. Pulamos de aviões, enfrentamos batalhas, vivemos grandes e avassaladoras paixões, voltamos no tempo e desvendamos os rincões mais distantes do espaço. Talvez, seja esse um elemento do ser social que em si mesmo não é um problema. Nossa projeção nos outros e mesmo a realização de nossos desejos na realização do outro, é próprio da sociabilidade humana, mas não é disso que se trata, mas de uma projeção na qual uma relação entre seres humanos assume a forma de uma relação entre coisas.

O fundamento da catarse é que projetamos para outro a realização de algo que por esse meio deixa de se realizar em nós, assim se aproxima do fenômeno da alienação e do estranhamento. No campo da política tal fenômeno está presente no mito fundador do Estado, tal como descrito pelas mãos de seus precursores contratualistas. Dizia Hobbes:

“Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que qualquer homem ou assembleia de homens a que sejam atribuídos pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seus representante), todos, sem exceção (…) deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens, tal como se fossem seus atos e decisões” (Hobbes,Leviatã, cap.XVIII).

Vejam, aqueles que “representam” decidem por nós, em nosso lugar. Os mais otimistas diriam: sim, mas e daí? É um ato legítimo de representação, em nosso nome, portanto, salvaguardando nossos interesses. O que os otimistas (ou ingênuos) não percebem é que a transposição para o universo simbólico e espetacular onde se dá a representação não é apenas a expressão refletida de nossa vontade como vontade geral, a refração que distorce toda representação é que os interesses particulares se apresentam como se fossem universais.

Vamos aos fatos. Vivemos em um presidencialismo de coalizão, isto é, o presidente governa construindo uma sustentação no Congresso (Senado e Câmara de Deputados). A sistemática política funciona no sentido de impor a necessidade de formar bancadas de sustentação entre forças distintas que ocupam, supostamente de maneira proporcional, os postos no legislativo. O meio consagrado de manter estas bancadas, condição essencial à governabilidade, é a troca de favores entre o executivo e o legislativo que pode se dar na divisão de cargos no governo, na aprovação de emendas ao orçamento, no direcionamento das ações públicas para áreas de interesse dos lobbies que os parlamentares representam.

Até aqui, a consciência condescendente de nossa época e a legislação considera legitimo e legal. O ato do espetáculo exige não apenas que os atores que representam atuem como se aquilo fosse o real, mas há a exigência de outra atuação complementar, aquela que impõe ao público que suponha real a atuação dos atores (a menos que estivéssemos diante do distanciamento brechitiano, que não cabe aqui). Assim, os governantes atuam desta forma como se fosse pelo interesse geral e o bom público finge acreditar.

O que os governantes sabem e o bom público também, é que este campo restrito de legalidade é constantemente subvertido por iniciativas que vão além do legal e do legítimo e a troca de favores inclui práticas diretas ou indiretas de corrupção. Longe de ser um desvio ou mau funcionamento de um sistema em si virtuoso, a corrupção é parte integrante e incontornável da forma de governo estabelecida. Mas para o bom andamento do espetáculo, todos temos que fingir que não sabíamos e, público e governantes, se mostrar surpresos (normalmente como mau atores) quando as práticas ilícitas se tornam visíveis.

As campanhas eleitorais, que são o ritual espetaculoso pelo qual se montam as representações governamentais e parlamentares, são fundamentalmente um ato explícito de corrupção e chantagem. Não importa que fira os mais elementares princípios da própria jurídicialidade burguesa. Vejam a distribuição do tempo de televisão (meio que, hoje, se tornou decisivo). Pela lei, ele é distribuído pelo tamanho das bancadas existentes, o que é absurdo uma vez que define uma proporção fundada nas eleições anteriores para um pleito aberto ao futuro e quebra a igualdade como condição da disputa. Tal procedimento abre a negociação pelo tempo em um verdadeiro balcão de negócios onde o que menos vale são programas e compromissos políticos fundados em interesses reais em disputa na sociedade (leia-se “de classes”).

Não se proíbe a mercantilização da política, mas a consciência piedosa de nossa época parece se espantar na hora de pagar pela compra realizada, como o desavisado no bordel se mostrando surpreso por não ter sido por amor. Não é menos corrupção, no exato sentido da palavra, um governo que mantêm as taxas de juros em patamares exorbitantes para atender as promessas de campanha ao setor bancário, ou que dirige as obras públicas em favor das grandes empreiteiras. Ele está pagando favores advindos do financiamento de campanha. Da mesma maneira os recursos oriundos destes financiamentos, sejam registrados e legalizados ou contabilizados no famoso caixa dois, são partilhados entre aqueles partidos e políticos que disciplinadamente mantiveram-se na sustentação do governo.

O PT tem razão em se mostrar indignado. Ele apenas atuou pelas mesmas regras que sempre se atuou no presidencialismo de coalizão, da mesma forma que os governos do PSDB, DEM e PPS, assim como o histórico fisiologismo do PMDB, sempre governaram. Seu engano, entre tantos, foi supor que tinha sido aceito no clube e receberia as mesmas prerrogativas que seus pares mais tradicionais. Acreditou que pelo fato de não abrir a caixa preta do governo FHC e expor as entranhas dos atos ilícitos ali praticados, não diferentes daqueles pelos quais foi julgado, ele seria poupado, numa espécie de crença ingênua de “amor, com amor se paga”, tendo que cantar, ao final, um samba amargurado: “você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão”.

Havia outro caminho? Esta é uma pergunta difícil. Para aqueles que acreditam que a estratégia política passa pelo suposto controle de governo tal com está definido nos marcos do Estado Burguês, ou seja, aboliram de sua concepção política a noção de ruptura, infelizmente, não. Mas não há inevitabilidade na política. O equívoco maior do PT e de sua estratégia é se prender aos limites da governabilidade burguesa e das amarras do presidencialismos de coalizão. Havia sim oura sustentação política, mas esta se localizava fora do parlamento e dos marcos da institucionalidade burguesa: os movimentos sociais e a organização autônoma da classe trabalhadora.

Essa opção levaria a um governo de tensões e intensificação da luta de classes, opção descartada pelos estrategistas petistas. A opção pela governabilidade com base na adesão (compra) de partidos implicou na aceitação tácita e explícita dos meios necessários para isso que agora são julgados como imorais e ilegais (e são).

Por isso, há uma ironia na última reunião do diretório nacional do PT que aventou a possibilidade de chamar as massas e a militância em defesa do PT contra o STF. Não se pensou em mobilizar as energias militantes e a capacidade de luta da classe trabalhadora quando podia e devia, para impor uma governabilidade que se dirigisse contra os limites da ordem, para sustentar uma reforma política que supera-se as armadilhas da governabilidade viciada estabelecida, para garantir uma reforma agrária, para barrar o desmonte das políticas públicas, para defender a previdência, para barrar os transgênicos e a supremacia do agronegócio. Agora querem que os trabalhadores saiam em defesa do governo contra uma decisão da justiça, da representação suprema de uma ordem política e jurídica a qual o PT se rendeu como limite intransponível. É mais que irônico, é ridículo.

Neste ponto o PT, mais uma vez, se mostrou coerente. Acatou a decisão da justiça e desautorizou as manifestações de massa.

Diz, mais uma vez Debord:

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (Debord, op. cit. 24)

Quem produziu espectadores não pode esperar agora que hajam como atores.

Quando morre um palhaço, triste e solitário, com cirrose de tanto beber para enganar a tristeza da vida, o público nem percebe. No picadeiro há outro, com uma grossa camada de maquiagem, com suas roupas coloridas e um sorriso desenhado na cara.  

O espetáculo não pode parar! Respeitável público…

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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A Lógica não serve para nada?


Julio Cabrera

(continuação)
Levando tudo isto em consideração, a minha apresentação da lógica poderia resumir-se nos cinco seguintes itens:

1'. Contra a ultra-generalidade.

Eu creio que a afirmação 1 é falsa. Na escolha dos "termos lógicos" (conectivos, quantificadores, etc) há, ao mesmo tempo, uma escolha do tipo de objeto do qual a lógica se ocupará. O específico tipo de objeto que LF estuda é, por exemplo, um objeto não afetado pela temporalidade, pela causalidade e pelos processos reais, um tipo de objeto totalmente sensível a operações tais como a comutatividade, a contraposição, o destaque, etc. Mas nem todos os objetos do mundo são deste tipo. Por que supor que o "objeto qualquer", com independência dos diferentes âmbitos temáticos, deva ser, por exemplo, um objeto atemporal? Eu diria, pelo contrário, que se faltar a temporalidade, isso prova que a lógica não está tratando com o "objeto qualquer", mas com um tipo peculiar de objeto desprovido de temporalidade.

2'. Contra a adequação.

Eu creio que os contra-exemplos e dificuldades de aplicação que os próprios lógicos freqüentemente encontram na aplicação dos esquemas de LF ao raciocínio ordinário e ao discurso filosófico, têm uma importância maior do que os lógicos estão dispostos a conceder, no seu poder de abalar a habitual (e monótona) apresentação da lógica (se a mesma se pretende analítica e com interesse filosófico). As paráfrases "reduzem", às vezes barbaramente, a variedade das formas dos objetos aos esquemas lógicos pre-determinados. Os artifícios dos quais os lógicos lançam mão para obter o "encaixe" nos esquemas e a relativa arbitrariedade das paráfrases, cheia de decisões cruciais acerca da tradução mais "bem sucedida", mostram que LF é muito mais inadequada do que habitualmente se pensa, e que deveriam ser tiradas as conseqüências disto. Trata-se, por conseguinte, não apenas de insistir nas inadequações, já perfeitamente visualizadas, nem de ficar analisando exemplos avulsos de inadequação, mas de situar a crítica baseada nessas observações num âmbito abrangente e radical de reflexão.

3'. Contra a exclusão das formas lexicais.

Se o que interessa inicialmente são os raciocínios ordinários do tipo que os filósofos fazem, nada mais típico deles do que as conexões entre peças lexicais, num sentido largo (não apenas as conexões "analíticas" estudadas na literatura, mas conexões que estão na interface entre dicionários e enciclopédias, conexões lexicais de variados tipos). Se LF visa um tipo de "generalidade" que deixa totalmente de lado por princípio, como habitualmente é feito, as conexões lexicais como sendo "materiais", terá deixado de lado um dos traços mais interessantes dos raciocínios ordinários. A introdução de estudos formais sobre conexões lexicais talvez deva modificar substancialmente toda a apresentação da lógica, diluindo-se a própria noção de "lógica clássica" como hoje entendida. É falso que as conexões lexicais sejam puramente materiais: os lingüistas e meu colaborador Olavo L.D.S. Filho, na obra escrita em co-autoria Inferências Lexicais e Interpretação de redes de predicados, mostraram que as conexões lexicais podem considerar-se formais à luz de novas análises diferentes das oferecidas por LF, análises que trabalham com redes de peças lexicais, procurando estruturas recorrentes e formalizáveis. Assim, este ponto é a estrita contrapartida do item 1: assim como as formas lógicas usuais de LF não são tão formais e gerais quanto se pretende, as conexões lexicais não são tão materiais e "extralógicas" quanto habitualmente se supõe.

4'. Contra o referencial fixo da "lógica clássica"

Por conseguinte, a construção da teoria lógica, se o nosso interesse primordial for filosófico, poderia iniciar-se a partir das conexões lexicais. O vinculo de, pelo menos, dois predicados, é -se poderia dizer- o ato inaugural da lógica: as conexões intersentenciais e a quantificação poderão vir depois. Se a conexão entre "x é verde" e "x é colorido" é formalmente estabelecida, as conexões entre essas duas sentenças ("x é verde e x é colorido", "x é verde ou x é colorido", Se "se x é verde então "x é colorido", etc) e as generalizações sobre seu conteúdo ("Para todo x, se x for verde, então x é colorido", "Existe um x tal que é verde e colorido", etc) poderão ser derivadas a partir daquela conexão primitiva. Se ela não existir, as sentenças e quantificações não decorrerão. A idéia é que as conexões lógicas usuais (sentenciais e quantificacionais) podem considerar-se como derivadas se suspendermos a proibição de considerar as conexões lexicais como não formais.

5'. Contra a história oficial da lógica.

Como ponto final mas não banal: ao longo de toda a história da filosofia houve numerosos filósofos que tiveram intuições acerca da interação entre formas e conteúdos dentro da constituição da teoria lógica; eles dirigiram críticas à pretensa "máxima generalidade" das estruturas lógicas, tecendo considerações acerca de como os conteúdos poderiam ser formalmente estudados. Hegel, Dewey e Husserl são, por exemplo, três filósofos modernos que construíram teorias lógicas nesse sentido, e foram completamente apagados da história oficial da lógica. Muitos outros filósofos (notadamente, Descartes, Locke e Kant), durante o "período obscuro" onde, habitualmente, se afirma (monotonamente e sem crítica) que "não houve nada de valioso em termos lógicos", tiveram idéias críticas contra a formalidade unilateral da lógica usual (na sua forma aristotélica escolástica ou moderna) e intuições construtivas acerca de outras maneiras de apresentar a lógica. Obviamente, isto da origem a uma história da lógica absolutamente diferente da que temos hoje.
No meu livro de 87, A Lógica Condenada, já se podem encontrar desenvolvimentos de todos estes tópicos. Posteriormente, continuei desenvolvendo minhas idéias e apresentando-as em outros âmbitos geográficos de discussão. Estas idéias foram apresentadas na França e no México com receptividade e interesse. Os textos mais completos sobre estas questões, além dos artigos recentes "Es realmente la lógica tópicamente neutra y completamente general?" e “Redes predicativas e inferências lexicais (Uma alternativa à lógica formal na análise de línguas naturais)”, são os livros 10 e 13 também mencionados no linkEscrevo.

texto completo disponível em: 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A Lógica não serve para nada?


Julio Cabrera


Quando comecei, já nos anos 70, no meio das iras dos "lógicos profissionais", a desenvolver as minhas primeiras críticas aos alcances da Lógica formal (LF) como instrumento de análise filosófica, não conhecia os textos de Nietzsche sobre lógica (eu os conheceria somente na década de 90). Mas, curiosamente, tinha já escrito textos nos anos 80 onde afirmava que a minha filosofia da lógica era basicamente "nietzscheana". Questão de instinto. (Lembrar também que no subtítulo de A Lógica condenada. Uma abordagem extemporânea de filosofia da lógica (1987), se utilizava um conceito tão nietzscheano como "extemporâneo"). Na verdade, as minhas críticas formulavam, de maneira mais clara e analítica (ou seja, de maneira menos genial) a idéia fundamental de Nietzsche: o desacordo básico e primitivo entre a linguagem (e as formas lógicas) e o mundo.

A característica mais evidente das introduções à lógica é a sua monotonia. A teoria lógica elementar é apresentada como uma doutrina consolidada, sem nenhuma crítica incisiva contra qualquer aspecto de sua exposição padrão. Não quero dizer (o que seria factualmente falso) que a lógica clássica não seja contestada, expandida ou minguada, pois é isso, precisamente, o que fazem as lógicas "não-clássicas". O ponto é que todas as contestações, expansões ou diminuições tomam a "lógica clássica", inevitavelmente, como ponto de referência (já na própria denominação de "não-clássico"). A lógica clássica deve ficar perfeitamente estabelecida para que todos esses "desvios" possam ser formulados.

Todas as introduções à lógica seguem exatamente o mesmo esquema: capítulos iniciais sobre a noção de "lógica" e de "argumento", esclarecimentos acerca de "distinções essenciais" (verdade e validez, uso e menção, etc), algumas noções de teoria de conjuntos, algumas informações sobre a história oficial da lógica, alguma apresentação do cálculo de sentenças e as tabelas de verdade, outra do cálculo de predicados de primeira ordem, um capítulo sobre dedução, e capítulos finais sobre o sistema da identidade, algo de meta-lógica, talvez alguma coisa sobre sistemas não-clássicos ou aplicações da lógica na ciência ou na linguagem comum. Variados números de exercícios, às vezes com soluções. (Como os 4 evangelhos, todos diferentes, mas todos contando a mesma história).

Por minha parte, não consigo expor a "lógica elementar" sem tropeçar continuamente com graves inconvenientes de concepção, com noções que me parecem duvidosas, com formulações com as que não posso concordar. Simplesmente não consigo avançar além das duas ou três primeiras páginas. Para explicar isto melhor, relaciono a seguir algumas das coisas que cansativa e rotineiramente se dizem acerca desta disciplina, e cuja problematização tem constituído a minha filosofia da lógica:

1. A idéia de que a lógica é completamente geral, não se referindo a nenhum tipo de objeto em particular; todos os objetos, seja qual for seu contexto ou o tipo de matéria de que se trate, seriam afetados pelas leis da lógica, pelo fato destas serem completamente gerais e do mais alto grau de formalidade. Isto fica claro toda vez que se salienta que os conteúdos dos raciocínios não interessam, que a matéria pode ser qualquer uma, que um raciocínio pertencente a qualquer domínio temático deverá submeter-se às leis da lógica. Significa que a lógica, na sua generalidade, refere-se a uma espécie de "objeto qualquer".

2. A idéia de que, na aplicação da lógica aos raciocínios ordinários, deve conceder-se que o instrumento lógico tem, certamente, limites, mas que fazendo certos esforços para construir paráfrases, os raciocínios ordinários acabarão "encaixando", de maneiras mais ou menos naturais, dentro dos esquemas da lógica, e que a sua validez pode ser avaliada pelos seus métodos. É hoje um lugar comum que os lógicos reconheçam as muitas limitações analíticas do aparato formal fornecido por LF: não há livro que não assinale para dificuldades, inconvenientes e limitações da análise lógica. Sustento, entretanto, que não se dimensionam corretamente os alcances destes problemas, e a sua importância para as relações da lógica com a análise filosófica. (O problema, então, não é de observação de dados, mas de reflexão acerca deles).

3. A idéia de que todas as conexões lexicais (advogado/profissional, fechado/aberto, solteiro/casado, etc) devem ficar fora do escopo da lógica precisamente por não serem gerais, nem estritamente formais, mas conexões baseadas em considerações "de conteúdo". Para LF é absolutamente óbvio que a passagem inferencial de, digamos, "x é verde" para "x é colorido", ou de "x é advogado" para "x tem uma profissão", etc, não são passagens lógicas, pois elas não são formais, mas dependentes do significado dos termos empregados.

4. A idéia de que a lógica elementar tem uma parte puramente sentencial, onde se opera com unidades indecomponíveis, e uma parte quantificacional, onde se opera com uma "análise interna de sentenças". Seja que se comece a exposição pela parte sentencial e se acrescente depois a parte quantificacional, seja que se apresente a lógica de primeira ordem com a sentencial já como sub-parte, de qualquer forma trata-se de dois setores da lógica que devem ser expostos como estruturas completamente estáveis e objetivas. (Tão forte é esta articulação sentencial/quantificacional que ela afeta inclusive às lógicas "divergentes": temos uma lógica modal sentencial e uma lógica modal quantificacional, uma lógica paraconsistente sentencial, uma lógica paraconsistente quantificacional, etc).

5. A idéia de que a lógica foi criada por Aristóteles, deu um "cochilo" durante vários séculos, e foi redescoberta por Frege no século XIX, sem nada ter havido de importante nos séculos intermediários. (Como curiosidade expositiva notável, e prova da mencionada monotonia, não conheço quase nenhuma história oficial da lógica que não se refira à famosa afirmação de Kant sobre a lógica ter nascido já acabada da mente de Aristóteles, como sendo um tremendo erro de apreciação. Nunca vi, em nenhum lugar, o menor esforço para tentar compreender o sentido da frase do grande filósofo).
Eu vejo nesta monotonia um dos traços característicos do filosofar acadêmico profissionalizado do século XX. Filosofa-se segundo palavras de ordem da "comunidade", através de exposições padronizadas, sem qualquer aceno para uma visão crítica e abridora de caminhos. A "comunidade" de filósofos (e de lógicos!) tomou o lugar da autoridade e da censura, em lugar do Estado ou da Igreja, como ainda no século XIX. Quando a uniformidade monótona é internalizada pela comunidade, os mecanismos de censura externa se tornam desnecessários, e cria-se uma falsa impressão de liberdade intelectual.
Eu creio haver algo de verdadeiro na idéia de que LF se afastou da filosofia, ainda que não concorde com os argumentos e observações dos filósofos tradicionalistas quando falam acerca deste assunto. Meu ponto de partida, na minha própria formulação das questões lógicas, é a busca de uma teoria lógica – semi-formal ou informal - que seja de interesse primordial para o filósofo, tal como concebido no link Filosofia, ou seja, para alguém interessado em pensar e refletir ao longo de um continuum de possibilidades, onde a análise lógica é um dos pólos e a existência humana o outro. Se o que nos interessa é o estudo lógico-analítico de raciocínios daqueles que o filósofo faz, a preocupação central da teoria lógica poderia não ser a "máxima generalidade" ou a "formalidade de mais alto nível", mas a generalidade e formalidade que sejam adequadas ao estudo daqueles raciocínios.
(continua)

para ler o texto completo: