quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Heráclito e seu Discurso


1.1  – VIGÍLIA E SONO

Donaldo Schuler

Heráclito, ao dizer que o oráculo de Delfos não declara nem oculta mas significa, define, com certeza, o seu próprio discurso. Sentindo a insuficiência do sistema lingüístico para desvendar o mistério do mundo, desenvolveu uma linguagem ambígua, alusiva, multissignificativa, apta a apanhar a complexidade da realidade apenas entrevista, discurso que gera outros discursos em corrente sem fim determinável.

Traduzir Heráclito é entrar num jogo em que as imagens se multiplicam, jogo de ondas, efêmeras, vivas. A infidelidade necessária da tradução abre distâncias em que os significados cambiantes se movem, cavando leitos imprevistos no fluir universal. Entremos no jogo sem detê-lo, sem receio de deslizes, mas com a firme determinação do lance adequado.

Embora seja este o discurso, sempre, os
homens tardam, não só antes de ouvi-lo, como
logo que o ouviram; pois, mesmo que todas
as coisas aconteçam de acordo com este discurso,
mostram-se semelhantes a inexperientes
ao experimentarem tais palavras e atos que
eu persigo segundo a natureza distinguindo
cada coisa e mostrando como ela é. Mas os
outros homens ignoram o que fazem depois
de acordarem, como esquecem o que fazem
dormindo (B1)

Que discurso é esse que não redime os homens da ignorância? Que fazer com o advérbio aei (sempre)? Os homens sempre tardam ou o discurso sempre é? Por que decidir o que Heráclito quer indeciso? Conservemos sempre na indecisão; na indecisão sempre declara a continuidade do acontecer e do permanecer aquém. Discurso? O universal ou o de Heráclito? Provoquemos, atentos ao pensador, a convergência de interpretações divergentes. Nosso discorrer se resolve no estar aquém não só do Discurso, o Discurso dos discursos, como também dos discursos em curso (o de Heráclito e o de outros) antes e depois de os termos ouvido. O Discurso e os discursos excedem-nos como processo de organização. Na impossibilidade e na obstinação de os alcançar, produzimos novos discursos, que no excesso têm o destino dos primeiros, e continuamos irremissivelmente imersos no acontecer da ignorância. Tardos, acontecemos na ignorância e fazemos a ignorância acontecer, o nosso inapelável caminho. Chegamos a estas reflexões, derivando o adjetivo aksynetos (tardo), de a-ksyn-iemai (não ir com, não acompanhar, ficar aquém da verdade, ouvir o apelo do Discurso sem entendê-lo. O adjetivo verbal em -tos só existe em derivados; aksynetos é um que não se apressa, não deseja empreender.) Como sempre, discurso é ambíguo, tanto pode ser o Discurso dos discursos como pode designar um dos discursos, o de Heráclito, por exemplo. Observe-se, entretanto, a diferença entre um discurso e o Discurso. Um discurso e o Discurso não coincidem, nem se repelem. O Discurso atravessa cada um dos discursos; neles o vemos e o perdemos. Não acontecemos apenas nós, também as coisas acontecem de acordo com o Discurso, acordo que não é coincidência, acordo que vem de desacordos sem os quais nenhum acordo se veria celebrado.

A inexperiência no Discurso não significa a falta de iniciação em qualquer discurso. O apego indevido a discursos retarda o acesso ao Discurso. Há discursos que prendem, fecham a passagem a outros discursos. São assim os discursos míticos na vigência do mito. Heráclito pensa, quem sabe, nos devotos aos mundos criados por Homero e Hesíodo. Palavras (epea) são epopéias? Atos (erga) são ritos através dos quais o homem procura passagem ao que o excede? O discurso de Heráclito agride como exposição, propõe o que outros discursos retêm. Se discursos têm a virtude de expor, não lhes falta a tenebrosa qualidade de impor, contradição alojada no bojo da exposição. Nenhum discurso retém a exposição sem prejuízo. Heráclito ataca a crosta endurecida de discursos que, negando-se como tais, tendem a absolutizar-se, evadidos do fluxo. O pensador afronta as couraças para surpreender o que elas encobrem. Faz-se obscuro para desencadear o que vive nas sombras, a natureza que acontece e faz acontecer. A forma verbal diegeumai ou diegeomai (persigo), derivada de hegemon, chefe de tropas, tem ressonância militar. Isso não surpreende num autor para quem o conflito é o pai de todas as coisas. Adversário de Homero, Heráclito apresenta-se como diegeta, narrador épico de uma campanha de que ele próprio é protagonista. O exército que o acompanha terá que distinguir (diaireon) em unidades forças conflitantes. Nessa empresa, todos são inexperientes já que procedem de um mundo, o mítico, em que se raciocinava diferentemente. Os que marcham avançam como quem desperta. Heráclito dispõe-se a dizer como as coisas são, desfeito o véu da noite que as revestia. Os que o ouvem devem contentar-se, entretanto, com uma exposição lenta, visto que o expositor não apresenta como os aedos fatos concluídos. Heráclito expõe as coisas à medida que as descobre. Mesmo assim, não as dá como prontas. Para acompanhar a exposição cada ouvinte terá que rever o que lhe é mostrado. Os resultados da investigação de homens que despertam só tocam a despertos. O método é revolucionário: em lugar do passado, o presente, investigação em lugar de cantos conclusivos, tarefa em andamento de que se ignora o fim. Do canto e da dança vai-se à fala, ao andar atento; do dizer das musas, ao Discurso – sem sujeito nem objeto –, o de sempre, fonte de todos os discursos.

Redimidos de narrativas míticas e de cerimônias rituais, palavras e atos são cuidadosamente examinados. Ao contrário dos pensadores preocupados em refletir sobre o fundamento, Heráclito detém-se naquilo que nos toca os ouvidos, os olhos, a língua, a pele. O sentido encontra-se no que sentimos. Quem fala não enuncia as regras que tornam o enunciado inteligível, entretanto, a gramática está presente em cada partícula do que dizemos. A gramática é o discurso. Como existem gramáticas regionais dentro da gramática geral, há o Discurso e os discursos. O universo de Heráclito é vivo, coisas meramente coisas não há. Todas as coisas e todas as palavras são atos: atos de fala, atos do Discurso. O discurso de Heráclito tem a vantagem de vencer as fronteiras do discurso particular em direção ao Discurso que excede todos os discursos e os apóia, Discurso oculto na natureza que oculta. Atento ao discurso, tanto o já muitas vezes dito quanto o ainda não proferido, Heráclito empreende o exame. O Discurso gera o que é e o que se diz. Gerando, restaura o movimento daquilo que propendia à rigidez letal.

Outros homens, não despertos como Heráclito, dormem no sono e na vigília. Afundados no sono, escapam-lhes as experiências cotidianas e suas urgências. Não vivem adormecidos os que buscam em agentes míticos explicação para os eventos? Acordados,
agem como se nada vissem. Com que motivo considerar desperto o homem que cuida apenas dos seus interesses sem procurar compreender o mundo como um todo, sem prestar atenção à relação entre as inumeráveis experiências cotidianas? Não contentes com palavras, os despertos perguntam pela gramática. A gramática só se desvela a vigilantes. Só eles podem avaliar, julgar, dizer.

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