segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A Lógica não serve para nada?


Julio Cabrera


Quando comecei, já nos anos 70, no meio das iras dos "lógicos profissionais", a desenvolver as minhas primeiras críticas aos alcances da Lógica formal (LF) como instrumento de análise filosófica, não conhecia os textos de Nietzsche sobre lógica (eu os conheceria somente na década de 90). Mas, curiosamente, tinha já escrito textos nos anos 80 onde afirmava que a minha filosofia da lógica era basicamente "nietzscheana". Questão de instinto. (Lembrar também que no subtítulo de A Lógica condenada. Uma abordagem extemporânea de filosofia da lógica (1987), se utilizava um conceito tão nietzscheano como "extemporâneo"). Na verdade, as minhas críticas formulavam, de maneira mais clara e analítica (ou seja, de maneira menos genial) a idéia fundamental de Nietzsche: o desacordo básico e primitivo entre a linguagem (e as formas lógicas) e o mundo.

A característica mais evidente das introduções à lógica é a sua monotonia. A teoria lógica elementar é apresentada como uma doutrina consolidada, sem nenhuma crítica incisiva contra qualquer aspecto de sua exposição padrão. Não quero dizer (o que seria factualmente falso) que a lógica clássica não seja contestada, expandida ou minguada, pois é isso, precisamente, o que fazem as lógicas "não-clássicas". O ponto é que todas as contestações, expansões ou diminuições tomam a "lógica clássica", inevitavelmente, como ponto de referência (já na própria denominação de "não-clássico"). A lógica clássica deve ficar perfeitamente estabelecida para que todos esses "desvios" possam ser formulados.

Todas as introduções à lógica seguem exatamente o mesmo esquema: capítulos iniciais sobre a noção de "lógica" e de "argumento", esclarecimentos acerca de "distinções essenciais" (verdade e validez, uso e menção, etc), algumas noções de teoria de conjuntos, algumas informações sobre a história oficial da lógica, alguma apresentação do cálculo de sentenças e as tabelas de verdade, outra do cálculo de predicados de primeira ordem, um capítulo sobre dedução, e capítulos finais sobre o sistema da identidade, algo de meta-lógica, talvez alguma coisa sobre sistemas não-clássicos ou aplicações da lógica na ciência ou na linguagem comum. Variados números de exercícios, às vezes com soluções. (Como os 4 evangelhos, todos diferentes, mas todos contando a mesma história).

Por minha parte, não consigo expor a "lógica elementar" sem tropeçar continuamente com graves inconvenientes de concepção, com noções que me parecem duvidosas, com formulações com as que não posso concordar. Simplesmente não consigo avançar além das duas ou três primeiras páginas. Para explicar isto melhor, relaciono a seguir algumas das coisas que cansativa e rotineiramente se dizem acerca desta disciplina, e cuja problematização tem constituído a minha filosofia da lógica:

1. A idéia de que a lógica é completamente geral, não se referindo a nenhum tipo de objeto em particular; todos os objetos, seja qual for seu contexto ou o tipo de matéria de que se trate, seriam afetados pelas leis da lógica, pelo fato destas serem completamente gerais e do mais alto grau de formalidade. Isto fica claro toda vez que se salienta que os conteúdos dos raciocínios não interessam, que a matéria pode ser qualquer uma, que um raciocínio pertencente a qualquer domínio temático deverá submeter-se às leis da lógica. Significa que a lógica, na sua generalidade, refere-se a uma espécie de "objeto qualquer".

2. A idéia de que, na aplicação da lógica aos raciocínios ordinários, deve conceder-se que o instrumento lógico tem, certamente, limites, mas que fazendo certos esforços para construir paráfrases, os raciocínios ordinários acabarão "encaixando", de maneiras mais ou menos naturais, dentro dos esquemas da lógica, e que a sua validez pode ser avaliada pelos seus métodos. É hoje um lugar comum que os lógicos reconheçam as muitas limitações analíticas do aparato formal fornecido por LF: não há livro que não assinale para dificuldades, inconvenientes e limitações da análise lógica. Sustento, entretanto, que não se dimensionam corretamente os alcances destes problemas, e a sua importância para as relações da lógica com a análise filosófica. (O problema, então, não é de observação de dados, mas de reflexão acerca deles).

3. A idéia de que todas as conexões lexicais (advogado/profissional, fechado/aberto, solteiro/casado, etc) devem ficar fora do escopo da lógica precisamente por não serem gerais, nem estritamente formais, mas conexões baseadas em considerações "de conteúdo". Para LF é absolutamente óbvio que a passagem inferencial de, digamos, "x é verde" para "x é colorido", ou de "x é advogado" para "x tem uma profissão", etc, não são passagens lógicas, pois elas não são formais, mas dependentes do significado dos termos empregados.

4. A idéia de que a lógica elementar tem uma parte puramente sentencial, onde se opera com unidades indecomponíveis, e uma parte quantificacional, onde se opera com uma "análise interna de sentenças". Seja que se comece a exposição pela parte sentencial e se acrescente depois a parte quantificacional, seja que se apresente a lógica de primeira ordem com a sentencial já como sub-parte, de qualquer forma trata-se de dois setores da lógica que devem ser expostos como estruturas completamente estáveis e objetivas. (Tão forte é esta articulação sentencial/quantificacional que ela afeta inclusive às lógicas "divergentes": temos uma lógica modal sentencial e uma lógica modal quantificacional, uma lógica paraconsistente sentencial, uma lógica paraconsistente quantificacional, etc).

5. A idéia de que a lógica foi criada por Aristóteles, deu um "cochilo" durante vários séculos, e foi redescoberta por Frege no século XIX, sem nada ter havido de importante nos séculos intermediários. (Como curiosidade expositiva notável, e prova da mencionada monotonia, não conheço quase nenhuma história oficial da lógica que não se refira à famosa afirmação de Kant sobre a lógica ter nascido já acabada da mente de Aristóteles, como sendo um tremendo erro de apreciação. Nunca vi, em nenhum lugar, o menor esforço para tentar compreender o sentido da frase do grande filósofo).
Eu vejo nesta monotonia um dos traços característicos do filosofar acadêmico profissionalizado do século XX. Filosofa-se segundo palavras de ordem da "comunidade", através de exposições padronizadas, sem qualquer aceno para uma visão crítica e abridora de caminhos. A "comunidade" de filósofos (e de lógicos!) tomou o lugar da autoridade e da censura, em lugar do Estado ou da Igreja, como ainda no século XIX. Quando a uniformidade monótona é internalizada pela comunidade, os mecanismos de censura externa se tornam desnecessários, e cria-se uma falsa impressão de liberdade intelectual.
Eu creio haver algo de verdadeiro na idéia de que LF se afastou da filosofia, ainda que não concorde com os argumentos e observações dos filósofos tradicionalistas quando falam acerca deste assunto. Meu ponto de partida, na minha própria formulação das questões lógicas, é a busca de uma teoria lógica – semi-formal ou informal - que seja de interesse primordial para o filósofo, tal como concebido no link Filosofia, ou seja, para alguém interessado em pensar e refletir ao longo de um continuum de possibilidades, onde a análise lógica é um dos pólos e a existência humana o outro. Se o que nos interessa é o estudo lógico-analítico de raciocínios daqueles que o filósofo faz, a preocupação central da teoria lógica poderia não ser a "máxima generalidade" ou a "formalidade de mais alto nível", mas a generalidade e formalidade que sejam adequadas ao estudo daqueles raciocínios.
(continua)

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