por: Vilém Flusser
Na situação imediatamente
anterior à atual revolução das comunicações era possível distinguir três níveis
comunicacionais na sociedade ocidental avançada. Sob critério temático, o nível
superior constituía a cultura "universal", o médio a cultura
"popular". Sob o critério dos códigos o nível superior se
caracterizava por símbolos que eram relativamente bem convencionados (como o
das ciências ou o das artes da elite), o nível médio por símbolos cuja
codificação deliberada tinha caldo no esquecimento (os das ditas "línguas
nacionais"), e o nível básico se caracterizava por símbolos jamais
deliberadamente codificados (como eram os símbolos dos dialéticos, trajes ou
danças típicas). Mas é sob critério estrutural que a distinção entre os níveis
oferece o maior interesse.
O nível superior tinha a
estrutura em árvore - círculos dialógicos ligados entre si por discursos
ramificados. O nível médio tinha a estrutura piramidal - discurso retransmitido
por relatos hierarquicamente organizados. E o nível básico tinha a estrutura de
mosaico (círculos dialógicos mutuamente isolados). Exemplos de árvores são, por
exemplo, universidade, laboratórios, tendências em pinturas. Exemplos de pirâmides:
escolas medias, exércitos, partidos. Exemplos de mosaicos seriam aldeias,
seitas, tribos. A comunicação em árvore se caracteriza pela progressiva
produção de informação nova, a piramidal pela preservação da informação
disponível, a de mosaico pela distribuição dialógica de informação disponível.
A dinâmica da árvore é a da historia, linearmente progressiva. A dinâmica da
pirâmide é autoritária, verticalmente conservadora e a dinâmica do mosaico é
pré-histórica, circularmente participatória.
A sociedade ocidental anterior
a atual revolução integrava os seus três níveis de comunicação da seguinte
maneira: o nível superior elaborava informação nova, o nível médio a transmitia
em direção ao nível básico, e este a integrava na memória da sociedade. Tal descrição
da dinâmica da comunicação é esquemática, porque despreza o feedback complexo
entre os três níveis, mas por ser esquemática facilita a compreensão da cena.
Em tal cena cabia a classe média, papel relativamente bem definido. Ela era
portadora das várias culturas nacionais, traduzia as informações elaboradas
pelo nível superior nos códigos das línguas nacionais, e as transmitia, assim
transcodificadas, para o nível básico da sociedade. Foi neste sentido que a
cultura ocidental era histórica como um todo, embora apenas o nível superior
tivesse participado ativamente no processo da elaboração de informação nova. A
classe média constituía o canal pelo qual a história informava o povo.
Tal papel desempenhado pela
classe média lhe conforta caráter específico no contexto da sociedade. Era
conservadora com relação ao nível superior (conservava as informações
elaboradas), e revolucionária com relação ao nível básico (transmitia
informação nova). Era apêndice do nível superior (servia-lhe de canal de
transição), e autoritária com relação ao nível básico (constituía pirâmide da
qual o último receptor era o povo). A posição da classe media no contexto da
sociedade era, pois ambígua, era receptora de informações em cuja elaboração
não participava, e era informadora do nível popular no qual tampouco
participava. Isto explica a ideologilização, por vezes violenta, o seu
nacionalismo, a sua dupla moral, o seu engajamento em movimentos
revolucionários que constituiriam ameaça á sua própria sobrevivência. Em tal
sentido o papel da classe média era o de suicida.
A atual revolução nas
comunicações transformou a cena descrita. Consiste ela, fundamentalmente, na
introdução de estrutura nova: a do anfiteatro. É ela estrutura que irradia as
informações elaboradas no nível superior diretamente em direção da base da
sociedade. Exemplos de anfiteatros: rádio, tevê, cinema. A árvore da
comunicação superior está, doravante, ligada diretamente aos anfiteatros que
funcionam como canais e como trans codificadores. Traduzem as informações novas
em códigos a.D. Ho. elaboradas pelo próprio nível superior, e as transmitem
rumo á base da sociedade.
O resultado é a destruição da
cultura popular e sua substituição pela cultura da massa. A estrutura de
mosaico se dilui, os diálogos circularem cessam, e a base da sociedade se
transforma em massa passiva agitada pelas informações que sobre ela incidem a
partir dos anfiteatros. Tal agitada, chamada ""opinião
publica"", serve de feedback para os programadores dos anfiteatros,
os quais são participantes da comunicação em árvore do nível superior.
Em tal situação, o nível médio
da comunicação, a classe média, deixa de desempenhar papel funcional, e passa a
ser anacronismo. Os atuais remanescentes da classe média são testemunhas de
situação superada pela revolução em comunicação exatamente como os são os
remanescentes da antiga popular, espécie de folclore. O fato é, por certo,
encoberto por densa neblina ideológica, espalhada pelos anfiteatros, mas
análises, como aqui esboça, podem contribuir para a dissolução de tais
neblinas. Em suma, na situação atual a classe média não mais desempenha papel
comunicológico essencial para a manutenção da sociedade, e deverá, mais cedo ou
mais tarde, mergulhar, na cultura da massa. A situação atual exige somente dois
níveis de comunicação, o dos elaboradores e dos programadores de informação, e
dos receptores e programadores.
Publicado originalmente em "Folha de São Paulo" 31/08/1980
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