(continuação)
Mas qual a ligação dessa temática com as manifestações? Os manifestantes
pensaram em tudo isso, têm esse nível de conscientização política? Em parte,
não, mas a população brasileira tem uma sensação, também, difusa, de que não é
representada politicamente. Em geral, a população “não gosta de política”, e
tem uma relação um tanto mágica com os “bons” e os “maus” governantes. Mas há
um descompasso gritante entre as medidas que são realizadas nos poderes
executivo e legislativo com a sensação de desconforto da população. Essa
sensação foi fortemente materializada no incômodo crescente gerado pelos gastos
exorbitantes com as “arenas” para a Copa do Mundo, somadas às medidas
restritivas impostas pela FIFA e aos deslocamentos de populações de baixa renda
resultantes das reformas no entorno. Mas é uma sensação que se repete com a complacência
dos governantes com a risível/terrível ascensão do pastor Marco Feliciano, como
presidente da Comissão de Direitos Humanos, apesar de sua evidente postura
racista e homofóbica. Em escala menor, movimentos sociais ficam abismados com o
fato do presidente da Comissão de Meio-Ambiente ser um grande fazendeiro,
frequentemente acusado de ser um dos maiores desmatadores do país. Todos esses
fatos são epifenômenos que, no entanto, revelam certa complacência dos poderes
constituídos, que sentem pouca necessidade de justificativa perante a
população. Essa questão vale, também, para denúncias de corrupção.
A questão da corrupção merece um capítulo à parte. Desde o surgimento de
algumas denúncias já no governo Lula e, particularmente com o episódio do
“mensalão”, a grande mídia passou a perpretar um ataque quase sistemático
contra o governo do PT. No caso específico da revista Veja, este foi acusado do “governo mais corrupto da história do
país”. Esta campanha se desdobrou em todo o processo do mensalão, ainda por ser
julgado pela história. De parte da imprensa de esquerda, houve certa
ambiguidade no episódio, pois ela tentava não ser conivente com as falhas ocorridas,
mas se negava, também, a fazer coro com a imprensa mais à direita. Para além
desse episódio, a esquerda sempre advogou, corretamente, que há uma
simplificação, pela grande imprensa, da análise da corrupção, que é restringida
a políticos profissionais, sem ênfase a todo o sistema corruptor, composto normalmente
de grandes empresas, que também pode ser patrocinadoras dessa mesma imprensa.
De qualquer forma, contudo, a esquerda ignora um fato elementar: a população,
de um modo geral, e independente de coloração partidária, tem ojeriza à
corrupção dos políticos. A indignação contra a corrupção, por mais simplista
que pareça, compõe esse quadro de desconforto geral da população, e é legítimo
que componha. É perigoso por parte da esquerda negligenciar esse aspecto.
Um último ponto, em relação a esse diagnóstico global de descontentamento
da população com os poderes. A população mais pobre ainda tem motivos
adicionais e gigantescos para ter materializado esse descompasso em relação ao
Estado. Em primeiro lugar, é uma população que, com frequência, recebe uma
oferta de serviços públicos com qualidade ainda mais baixa do que a população
de classe média. Isso se mostra nas ruas esburacadas, no transporte público
sempre insuficiente e de baixa qualidade, em serviços de saúde e educação
inadequados, entre outros fatores. Mas o Estado não é falho apenas na sua
omissão. Ele também constrange a população mais periférica com medidas
ostensivas de violência. Isso se materializa, de um lado, no altíssimo nível de
encarceramento no país. Atualmente, já são mais de 500 mil presos, sendo que
quase 200 mil são provisórios, ou seja, sequer foram julgados! Dentre esses
prisioneiros, provisórios ou não, algumas dezenas de milhares são pequenos
traficantes (ou que foram acusados como tal) que são presos sem direito à
fiança, mesmo que nunca tenham roubado ou matado ninguém. Outros tantos são
encarcerados por pequenos furtos. De outro lado, para quem está de fora da
prisão, essas medidas ostensivas são materializadas por frequentes abusos
policiais, com medidas de busca, o eterno medo de serem acusados de
traficantes, eventuais ações de tortura e até mesmo assassinatos. Mesmo a
população que nunca sofreu diretamente tais abusos, vive frequentemente com
medo de estar “no lugar errado, na hora errada”. Assim, a população de baixa
renda, principalmente nas grandes metrópoles, sente menos ainda que o Estado
lhe pertença. Ao contrário, pensa muitas vezes o Estado como fonte constante de
opressão.
Não é difícil imaginar que esse conjunto também difuso de motivos, mas
unificado por um idêntico incômodo das instituições políticas, pudesse gerar em
algum momento o manifesto de indignação apresentado nos últimos dias, inclusive
ao menos parte da reação violenta que se apresentou. Mas nada disso é novidade,
por que justamente agora? Difícil afirmar, com certeza. Uma tese possível é que
o ufanismo de pouca sustentação em torno da Copa, frente aos gastos exacerbados
com ela, tenham sido fator simbólico que materializou esse incômodo. Outro aspecto
é que os últimos anos têm apresentado diversas manifestações de massa pelo
mundo (Ocuppy Wall Street, Indignados na Espanha, a “Primavera
Árabe” e, mais recentemente, as revoltas na Turquia). Essas revoltas têm uma
tendência a alimentarem-se mutuamente. Finalmente: há um interessante paralelo
entre as manifestações e o já antigo “maio de 68” da França. Aqui como lá,
foram movimentos que foram desencadeados por motivos específicos e que foram
alimentados inclusive pela arrogância da repressão policial. Aqui como lá, não
era um momento especialmente difícil na economia, não foi sobretudo a miséria
que movimentou as energias. Lá, não houve tantos desdobramentos práticos
específicos após o movimento, mas mudou o modo de se pensar a política, de
repente certos políticos pareceram ultrapassados – no caso de lá, o general De
Gaulle, inclusive.
(continua)
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