sexta-feira, 12 de julho de 2013

Manifestações de Junho e Reforma Política #2



Laurenio Sombra

(continuação)
Mas qual a ligação dessa temática com as manifestações? Os manifestantes pensaram em tudo isso, têm esse nível de conscientização política? Em parte, não, mas a população brasileira tem uma sensação, também, difusa, de que não é representada politicamente. Em geral, a população “não gosta de política”, e tem uma relação um tanto mágica com os “bons” e os “maus” governantes. Mas há um descompasso gritante entre as medidas que são realizadas nos poderes executivo e legislativo com a sensação de desconforto da população. Essa sensação foi fortemente materializada no incômodo crescente gerado pelos gastos exorbitantes com as “arenas” para a Copa do Mundo, somadas às medidas restritivas impostas pela FIFA e aos deslocamentos de populações de baixa renda resultantes das reformas no entorno. Mas é uma sensação que se repete com a complacência dos governantes com a risível/terrível ascensão do pastor Marco Feliciano, como presidente da Comissão de Direitos Humanos, apesar de sua evidente postura racista e homofóbica. Em escala menor, movimentos sociais ficam abismados com o fato do presidente da Comissão de Meio-Ambiente ser um grande fazendeiro, frequentemente acusado de ser um dos maiores desmatadores do país. Todos esses fatos são epifenômenos que, no entanto, revelam certa complacência dos poderes constituídos, que sentem pouca necessidade de justificativa perante a população. Essa questão vale, também, para denúncias de corrupção.
A questão da corrupção merece um capítulo à parte. Desde o surgimento de algumas denúncias já no governo Lula e, particularmente com o episódio do “mensalão”, a grande mídia passou a perpretar um ataque quase sistemático contra o governo do PT. No caso específico da revista Veja, este foi acusado do “governo mais corrupto da história do país”. Esta campanha se desdobrou em todo o processo do mensalão, ainda por ser julgado pela história. De parte da imprensa de esquerda, houve certa ambiguidade no episódio, pois ela tentava não ser conivente com as falhas ocorridas, mas se negava, também, a fazer coro com a imprensa mais à direita. Para além desse episódio, a esquerda sempre advogou, corretamente, que há uma simplificação, pela grande imprensa, da análise da corrupção, que é restringida a políticos profissionais, sem ênfase a todo o sistema corruptor, composto normalmente de grandes empresas, que também pode ser patrocinadoras dessa mesma imprensa. De qualquer forma, contudo, a esquerda ignora um fato elementar: a população, de um modo geral, e independente de coloração partidária, tem ojeriza à corrupção dos políticos. A indignação contra a corrupção, por mais simplista que pareça, compõe esse quadro de desconforto geral da população, e é legítimo que componha. É perigoso por parte da esquerda negligenciar esse aspecto.
Um último ponto, em relação a esse diagnóstico global de descontentamento da população com os poderes. A população mais pobre ainda tem motivos adicionais e gigantescos para ter materializado esse descompasso em relação ao Estado. Em primeiro lugar, é uma população que, com frequência, recebe uma oferta de serviços públicos com qualidade ainda mais baixa do que a população de classe média. Isso se mostra nas ruas esburacadas, no transporte público sempre insuficiente e de baixa qualidade, em serviços de saúde e educação inadequados, entre outros fatores. Mas o Estado não é falho apenas na sua omissão. Ele também constrange a população mais periférica com medidas ostensivas de violência. Isso se materializa, de um lado, no altíssimo nível de encarceramento no país. Atualmente, já são mais de 500 mil presos, sendo que quase 200 mil são provisórios, ou seja, sequer foram julgados! Dentre esses prisioneiros, provisórios ou não, algumas dezenas de milhares são pequenos traficantes (ou que foram acusados como tal) que são presos sem direito à fiança, mesmo que nunca tenham roubado ou matado ninguém. Outros tantos são encarcerados por pequenos furtos. De outro lado, para quem está de fora da prisão, essas medidas ostensivas são materializadas por frequentes abusos policiais, com medidas de busca, o eterno medo de serem acusados de traficantes, eventuais ações de tortura e até mesmo assassinatos. Mesmo a população que nunca sofreu diretamente tais abusos, vive frequentemente com medo de estar “no lugar errado, na hora errada”. Assim, a população de baixa renda, principalmente nas grandes metrópoles, sente menos ainda que o Estado lhe pertença. Ao contrário, pensa muitas vezes o Estado como fonte constante de opressão.

Não é difícil imaginar que esse conjunto também difuso de motivos, mas unificado por um idêntico incômodo das instituições políticas, pudesse gerar em algum momento o manifesto de indignação apresentado nos últimos dias, inclusive ao menos parte da reação violenta que se apresentou. Mas nada disso é novidade, por que justamente agora? Difícil afirmar, com certeza. Uma tese possível é que o ufanismo de pouca sustentação em torno da Copa, frente aos gastos exacerbados com ela, tenham sido fator simbólico que materializou esse incômodo. Outro aspecto é que os últimos anos têm apresentado diversas manifestações de massa pelo mundo (Ocuppy Wall Street, Indignados na Espanha, a “Primavera Árabe” e, mais recentemente, as revoltas na Turquia). Essas revoltas têm uma tendência a alimentarem-se mutuamente. Finalmente: há um interessante paralelo entre as manifestações e o já antigo “maio de 68” da França. Aqui como lá, foram movimentos que foram desencadeados por motivos específicos e que foram alimentados inclusive pela arrogância da repressão policial. Aqui como lá, não era um momento especialmente difícil na economia, não foi sobretudo a miséria que movimentou as energias. Lá, não houve tantos desdobramentos práticos específicos após o movimento, mas mudou o modo de se pensar a política, de repente certos políticos pareceram ultrapassados – no caso de lá, o general De Gaulle, inclusive.
(continua)

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