segunda-feira, 8 de julho de 2013

Manifestações de Junho e Reforma Política #1

(este texto foi originalmente escrito em junho de 2013)


Laurenio Sombra

“Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”
Bertolt Brecht

Ainda estamos vivendo o rescaldo das grandes manifestações nos últimos dias, iniciadas a propósito do Movimento Passe Livre em São Paulo, mas estendida por todo o país, com ênfase em cidades em que ocorriam jogos da Copa das Confederações. Praticamente ninguém ficou alheio a elas, que foram vividas num misto de espanto, admiração e medo por diversas pessoas. Alguns aspectos chamaram a atenção, além do óbvio impacto do número de manifestantes, que chegaram a representar mais de um milhão de pessoas na 5ª feira (20/06): o conteúdo difuso das manifestações, a violência policial muitas vezes exacerbada e a reação corajosa de diversos manifestantes, a exigência de apartidarismo e mesmo o afastamento ríspido de qualquer bandeira partidária, as ações de depredação de patrimônio (carros, ônibus, caixas de lixos, telefones públicos, janelas de loja) por parte de alguns manifestantes, e finalmente o surgimento de grupos de direita com bandeiras reacionárias. A grande mídia, com tendência conservadora, iniciou em geral com pedidos veementes de coibição das manifestações, mas face à reação contra elas (especialmente contra a Rede Globo) e a jornalistas feridos pela polícia, mudou o discurso e passou a enaltecer o movimento, mas ressalvando as “exceções” dos “vândalos”.
Da parte dos movimentos institucionalizados de esquerda, o clamor pelo “apartidarismo” apresentou-se como um dado preocupante. Como se encaminhar um movimento político sério sem aparentes lideranças e sem partidos? Qual o sentido de um movimento que sequer apresenta bandeiras específicas? Ficou o receio de que um movimento com essa natureza seria facilmente cooptado por bandeiras de grupos de direita como um difuso “basta à corrupção”. Em grupos de esquerda que apoiam o governo do PT, o receio se ampliou como assimilável à oposição, inclusive com vozes “udenistas” de apoio ao impeachment de Dilma, criação de um Partido Militar ou, ao menos, o enfraquecimento do atual governo para as próximas eleições.
Frequentemente as leituras do movimento foram enviesadas pelas opiniões prévias de cada intérprete. A depender dos gostos anteriores, era um movimento por “mais saúde e educação”, contra os gastos abusivos da Copa, contra a criminalidade e a corrupção, contra todos os políticos, pelo casamento gay, pela descriminalização da maconha, contra a inflação, contra o Estado policial, contra Dilma, etc. Cabe, entretanto, se dar um passo atrás e tentar, de fato, compreender o que permite minimamente aproximar fenômenos tão difusos. Nesse sentido, peço licença para uma digressão.
O Brasil apresentou, pelo menos nos últimos vinte anos, aspectos paradoxais. No final do governo Itamar e no decorrer do governo FCH derrubamos finalmente a inflação e consolidamos, para o bem e para o mal, um conjunto de regras estáveis de controle da nossa moeda. Iniciaram-se algumas medidas tímidas de investimento social, que foram aprofundadas no governo Lula. Neste, diversas medidas favoreceram um início, também tímido, de reversão da nossa profunda desigualdade de renda. O investimento no bolsa-família, aumento real do salário mínimo, aumento de crédito para consumidores de baixa renda, políticas afirmativas, investimento na agricultura familiar, medidas de fomento de desenvolvimento regional, incentivo descentralizado à cultura (bastante reduzido no governo Dilma), tudo isso estruturado por um crescimento econômico razoável, permitiram uma redução da pobreza no país, e um incremento da propalada “classe C”, bem como um maior acesso da população a bens culturais, muito embora, repita-se, a desigualdade continuou forte no país.
Do outro lado, essas medidas foram acompanhadas por uma tendência de forte enriquecimento do setor financeiro desde o governo FHC e mantida no governo Lula (só parcialmente atenuado por Dilma), subsídios ao agronegócio, medidas de fortalecimento do capital com consequentes tensões econômicas e sociais, e mesmo financiamento direto de grandes empresários via BNDES. Nem de longe, os governos do PT criaram desconfortos efetivos para o empresariado nacional, exceto em questões tópicas.
Mas ainda mais importante para o que se quer analisar: desde o governo FHC, o poder executivo brasileiro estruturou-se numa lógica de coalizões que já fazia muito pouco apelo a qualquer caráter ideológico. Formou-se, no país, uma gama de partidos (capitaneada pelo PMDB) já sem nenhuma bandeira específica, mas com um enorme apetite. O que se passou a chamar de “governabilidade” significa, na prática, maior tempo nos horários políticos, a possibilidade do poder executivo aprovar no Congresso leis que lhe interessam e, tão ou mais importante que os fatores anteriores, a necessidade de não ser permanentemente chantageado com ameaças de impeachment e de CPIs. Em consequência: se os eleitores votavam em determinado partido (como o PT, nas últimas eleições para presidente), tinham de ver o governo conviver com diversos ministros com orientações ideológicas não previstas nos programas eleitorais.
Outro aspecto fundamental: quando elegemos o poder executivo de qualquer nível, federal, estadual ou municipal, há de todo modo, uma sensação de que o governante foi efetivamente eleito pela maioria da população que, dentre as opções definidas, o escolheu. Quando nos voltamos para o Congresso, essa sensação é mais difusa. Muitos dos partidos numericamente representativos não apresentaram nenhuma proposta consistente, que precisasse defender no decorrer do mandato legislativo. A eleição apenas apresenta um conjunto infindável e disperso de nomes, imagens e slogans, que massacram a população na época das eleições, que vota sem muita diferença, por motivos também bastante dispersos. Mas se não há consistência na proposta de diversos partidos, a matemática das eleições age como se ela houvesse: em função do famoso quociente eleitoral, é o conjunto de votos do partido que define o número de parlamentares eleitos. Se a população, inclusive, votar maciçamente em um candidato (por conteúdos apresentados ou por mera diversão), o seu voto será distribuído entre diversos outros candidatos pouco votados, o que não implica nenhuma fidelidade ao partido que o elegeu.

O resultado mais imediato: o poder legislativo, aquele que deveria ser o mais importante de todos, aquele que define as leis, a regra de jogo do funcionamento do país, se apresenta com baixíssima consistência de conteúdo, e com praticamente nenhuma necessidade interna de se justificar ao país. Para falarmos em níveis absurdos, um governante do poder executivo sempre tem algum prurido em aumentar o próprio salário, os congressistas não, e isso por um motivo simples: a escolha do parlamentar é tão difusa que poucos vão se lembrar de quem apoiou o quê, nas próximas eleições, e basta uma votação minoritária, turbinada de “quociente eleitoral”, que ele será reeleito, mesmo que seja bastante impopular em certas plagas – principalmente, se sua campanha for bem financiada, e permitir uma grande difusão audiovisual das suas “propostas”. O outro resultado é que o poder legislativo legisla pouco. Muitas “regras do jogo” são estabelecidas pelo poder executivo (via medidas provisórias ou, ao menos, instruções para os líderes partidários) e pelo poder judiciário, que precisa normatizar regras constitucionais não (ou mal) regulamentadas. Quando alguém, em nome da “harmonia dos poderes”, propõe acabar com essas “intervenções” do poder judiciário e do poder executivo, esquece que, dado o estado atual, seria muito pior se elas não fossem feitas...
(continua)


Laurenio Sombra é professor de filosofia política na Universidades Estadual de Feira de Santana.

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