(este texto foi originalmente escrito em junho de 2013)
Laurenio Sombra
“Do rio que tudo
arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o
comprimem”
Bertolt Brecht
Ainda estamos vivendo o rescaldo das grandes manifestações nos últimos
dias, iniciadas a propósito do Movimento Passe Livre em São Paulo, mas
estendida por todo o país, com ênfase em cidades em que ocorriam jogos da Copa
das Confederações. Praticamente ninguém ficou alheio a elas, que foram vividas
num misto de espanto, admiração e medo por diversas pessoas. Alguns aspectos
chamaram a atenção, além do óbvio impacto do número de manifestantes, que
chegaram a representar mais de um milhão de pessoas na 5ª feira (20/06): o
conteúdo difuso das manifestações, a violência policial muitas vezes exacerbada
e a reação corajosa de diversos manifestantes, a exigência de apartidarismo e
mesmo o afastamento ríspido de qualquer bandeira partidária, as ações de
depredação de patrimônio (carros, ônibus, caixas de lixos, telefones públicos,
janelas de loja) por parte de alguns manifestantes, e finalmente o surgimento
de grupos de direita com bandeiras reacionárias. A grande mídia, com tendência
conservadora, iniciou em geral com pedidos veementes de coibição das
manifestações, mas face à reação contra elas (especialmente contra a Rede
Globo) e a jornalistas feridos pela polícia, mudou o discurso e passou a
enaltecer o movimento, mas ressalvando as “exceções” dos “vândalos”.
Da parte dos movimentos institucionalizados de esquerda, o clamor pelo
“apartidarismo” apresentou-se como um dado preocupante. Como se encaminhar um
movimento político sério sem aparentes lideranças e sem partidos? Qual o
sentido de um movimento que sequer apresenta bandeiras específicas? Ficou o
receio de que um movimento com essa natureza seria facilmente cooptado por
bandeiras de grupos de direita como um difuso “basta à corrupção”. Em grupos de
esquerda que apoiam o governo do PT, o receio se ampliou como assimilável à
oposição, inclusive com vozes “udenistas” de apoio ao impeachment de Dilma,
criação de um Partido Militar ou, ao menos, o enfraquecimento do atual governo
para as próximas eleições.
Frequentemente as leituras do movimento foram enviesadas pelas opiniões
prévias de cada intérprete. A depender dos gostos anteriores, era um movimento
por “mais saúde e educação”, contra os gastos abusivos da Copa, contra a
criminalidade e a corrupção, contra todos os políticos, pelo casamento gay,
pela descriminalização da maconha, contra a inflação, contra o Estado policial,
contra Dilma, etc. Cabe, entretanto, se dar um passo atrás e tentar, de fato,
compreender o que permite minimamente aproximar fenômenos tão difusos. Nesse
sentido, peço licença para uma digressão.
O Brasil apresentou, pelo menos nos últimos vinte anos, aspectos
paradoxais. No final do governo Itamar e no decorrer do governo FCH derrubamos
finalmente a inflação e consolidamos, para o bem e para o mal, um conjunto de
regras estáveis de controle da nossa moeda. Iniciaram-se algumas medidas
tímidas de investimento social, que foram aprofundadas no governo Lula. Neste,
diversas medidas favoreceram um início, também tímido, de reversão da nossa
profunda desigualdade de renda. O investimento no bolsa-família, aumento real
do salário mínimo, aumento de crédito para consumidores de baixa renda,
políticas afirmativas, investimento na agricultura familiar, medidas de fomento
de desenvolvimento regional, incentivo descentralizado à cultura (bastante
reduzido no governo Dilma), tudo isso estruturado por um crescimento econômico
razoável, permitiram uma redução da pobreza no país, e um incremento da
propalada “classe C”, bem como um maior acesso da população a bens culturais,
muito embora, repita-se, a desigualdade continuou forte no país.
Do outro lado, essas medidas foram acompanhadas por uma tendência de
forte enriquecimento do setor financeiro desde o governo FHC e mantida no governo
Lula (só parcialmente atenuado por Dilma), subsídios ao agronegócio, medidas de
fortalecimento do capital com consequentes tensões econômicas e sociais, e
mesmo financiamento direto de grandes empresários via BNDES. Nem de longe, os
governos do PT criaram desconfortos efetivos para o empresariado nacional,
exceto em questões tópicas.
Mas ainda mais importante para o que se quer analisar: desde o governo
FHC, o poder executivo brasileiro estruturou-se numa lógica de coalizões que já
fazia muito pouco apelo a qualquer caráter ideológico. Formou-se, no país, uma
gama de partidos (capitaneada pelo PMDB) já sem nenhuma bandeira específica,
mas com um enorme apetite. O que se passou a chamar de “governabilidade”
significa, na prática, maior tempo nos horários políticos, a possibilidade do
poder executivo aprovar no Congresso leis que lhe interessam e, tão ou mais
importante que os fatores anteriores, a necessidade de não ser permanentemente
chantageado com ameaças de impeachment e de CPIs. Em consequência: se os
eleitores votavam em determinado partido (como o PT, nas últimas eleições para
presidente), tinham de ver o governo conviver com diversos ministros com
orientações ideológicas não previstas nos programas eleitorais.
Outro aspecto fundamental: quando elegemos o poder executivo de qualquer
nível, federal, estadual ou municipal, há de todo modo, uma sensação de que o
governante foi efetivamente eleito pela maioria da população que, dentre as
opções definidas, o escolheu. Quando nos voltamos para o Congresso, essa
sensação é mais difusa. Muitos dos partidos numericamente representativos não
apresentaram nenhuma proposta consistente, que precisasse defender no decorrer
do mandato legislativo. A eleição apenas apresenta um conjunto infindável e
disperso de nomes, imagens e slogans, que massacram a população na época das
eleições, que vota sem muita diferença, por motivos também bastante dispersos. Mas
se não há consistência na proposta de diversos partidos, a matemática das
eleições age como se ela houvesse: em função do famoso quociente eleitoral, é o conjunto de votos do partido que define o
número de parlamentares eleitos. Se a população, inclusive, votar maciçamente
em um candidato (por conteúdos apresentados ou por mera diversão), o seu voto
será distribuído entre diversos outros candidatos pouco votados, o que não
implica nenhuma fidelidade ao partido que o elegeu.
O resultado mais imediato: o poder legislativo, aquele que deveria ser o
mais importante de todos, aquele que define as leis, a regra de jogo do
funcionamento do país, se apresenta com baixíssima consistência de conteúdo, e
com praticamente nenhuma necessidade interna de se justificar ao país. Para
falarmos em níveis absurdos, um governante do poder executivo sempre tem algum
prurido em aumentar o próprio salário, os congressistas não, e isso por um
motivo simples: a escolha do parlamentar é tão difusa que poucos vão se lembrar
de quem apoiou o quê, nas próximas eleições, e basta uma votação minoritária,
turbinada de “quociente eleitoral”, que ele será reeleito, mesmo que seja
bastante impopular em certas plagas – principalmente, se sua campanha for bem
financiada, e permitir uma grande difusão audiovisual das suas “propostas”. O
outro resultado é que o poder legislativo legisla pouco. Muitas “regras do
jogo” são estabelecidas pelo poder executivo (via medidas provisórias ou, ao
menos, instruções para os líderes partidários) e pelo poder judiciário, que
precisa normatizar regras constitucionais não (ou mal) regulamentadas. Quando
alguém, em nome da “harmonia dos poderes”, propõe acabar com essas
“intervenções” do poder judiciário e do poder executivo, esquece que, dado o
estado atual, seria muito pior se elas não fossem feitas...
(continua)
Laurenio Sombra é professor de filosofia política na Universidades Estadual de Feira de Santana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário