Bertrand Russell
1912, Oxford University Press,
1959, reimpresso em 1971-2
Tradução: Jaimir Conte
Capítulo XV
O Valor da Filosofia
(continuação)
O
valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua
própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela
vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais
de sua época e do seus país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem
a cooperação ou o consentimento de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo
tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não
levantam problemas e as possibilidades infamiliares são desdenhosamente
rejeitadas. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos
damos conta (como vimos nos primeiros capítulos deste livro) de que até as
coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas
muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer
com certeza qual é a verdadeira resposta para as dúvidas que ela própria
levanta, é capaz de sugerir numerosas possibilidades que ampliam nossos
pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. Desta maneira, embora diminua
nosso sentimento de certeza com relação ao que as coisas são, aumenta em muito
nosso conhecimento a respeito do que as coisas podem ser; ela remove o
dogmatismo um tanto arrogante daqueles que nunca chegaram a empreender viagens
nas regiões da dúvida libertadora; e vivifica nosso sentimento de admiração, ao
mostrar as coisas familiares num determinado aspecto não familiar.
Além
de sua utilidade ao mostrar insuspeitadas possibilidades, a filosofia tem um
valor - talvez seu principal valor - por causa da grandeza dos objetos que ela
contempla, e da liberdade proveniente da visão rigorosa e pessoal resultante de
sua contemplação. A vida do homem reduzido ao instinto encerra-se no círculo de
seus interesses particulares; a família e os amigos podem ser incluídos, mas o
resto do mundo para ele não conta, exceto na medida em que ele pode ajudar ou
impedir o que surge dentro do círculo dos desejos instintivos. Em tal vida
existe alguma coisa que é febril e limitada, em comparação com a qual a vida
filosófica é serena e livre. Situado em meio de um mundo poderoso e vasto que
mais cedo ou mais tarde deverá deitar nosso mundo privado em ruínas, o mundo
privado dos interesses instintivos é muito pequeno. A não ser que ampliemos o
nosso interesse de maneira a incluir todo o mundo externo, ficaremos como uma
guarnição numa praça sitiada, sabendo que o inimigo não a deixará fugir e que a
capitulação final é inevitável. Não há paz em tal vida, mas uma luta contínua
entre a insistência do desejo e a impotência da vontade. De uma maneira ou de
outra, se pretendemos uma vida grande e livre, devemos escapar desta prisão e
desta luta.
Uma
válvula de escape é pela contemplação filosófica. A contemplação filosófica não
divide, em suas investigações mais amplas, o universo em dois campos hostis:
amigos e inimigos, aliados e adversários, bons e maus; ela encara o todo
imparcialmente. A contemplação filosófica, quando é pura, não visa provar que o
restante do universo é semelhante ao homem. Toda aquisição de conhecimento é um
alargamento do Eu, mas este alargamento é melhor alcançado quando não é
procurado diretamente. Este alargamento é obtido quando o desejo de
conhecimento é somente operativo, por um estudo que não deseja previamente que
seus objetos tenham este ou aquele caracter, mas adapte o Eu aos caracteres que
ele encontra em seus objetos. Esse alargamento do Eu não é obtido quando,
tomando o Eu como ele é, tentamos mostrar que o mundo é tão similar a este Eu
que seu conhecimento é possível sem qualquer aceitação do que parece estranho.
O desejo para provar isto é uma forma de egotismo, é um obstáculo para o
crescimento do Eu que ele deseja, e do qual o Eu sabe que é capaz. O egotismo,
na especulação filosófica como em tudo o mais, vê o mundo como um meio para
seus próprios fins; assim, ele faz do mundo menos caso do que faz do Eu, e o Eu
coloca limites para a grandeza de seus bens. Na contemplação, pelo contrário,
partimos do não-Eu, e por meio de sua grandeza os limites do Eu são ampliados;
através da infinidade do universo, a mente que o contempla participa um pouco
da infinidade.
Por
esta razão a grandeza da alma não é promovida por aquelas filosofias que
assimilam o universo ao Homem. O conhecimento é uma forma de união do Eu com o
não-Eu. Como toda união, ela é prejudicada pelo domínio, e, portanto, por
qualquer tentativa de forçar o universo em conformidade com o que descobrimos
em nós mesmos. Existe uma tendência filosófica muito difundida em relação a
visão que nos diz que o Homem é a medida de todas as coisas; que a verdade é
construção humana; que espaço e tempo, e o mundo dos universais, são
propriedades da mente, e que, se existe alguma coisa que não seja criada pela
mente, é algo incognoscível e de nenhuma importância para nós. Esta visão, se
nossas discussões precedentes forem corretas, não é verdadeira; mas além de não
ser verdadeira, ela tem o efeito de despojar a contemplação filosófica de tudo
aquilo que lhe dá valor, visto que ela aprisiona a contemplação do Eu. O que
tal visão chama conhecimento não é uma união com o não-Eu, mas uma série de
preconceitos, hábitos e desejos, que compõem um impenetrável véu entre nós e o
mundo para além de nós. O homem que se compraz em tal teoria do conhecimento
humano assemelha-se ao homem que nunca abandona seu círculo doméstico por
receio de que fora dele sua palavra não seja lei.
A
verdadeira contemplação filosófica, pelo contrário, encontra sua satisfação no
próprio alargamento do não-Eu, em toda coisa que engrandece os objetos
contemplados, e desse modo o sujeito que contempla. Na contemplação, tudo
aquilo que é pessoal e privado, tudo o que depende do hábito, do auto-interesse
ou desejo, deforma o objeto, e, portanto, prejudica a união que a inteligência
busca. Levantando uma barreira entre o sujeito e o objeto, as coisas pessoais e
privadas tornam-se uma prisão para o intelecto. O livre intelecto enxergará
assim como Deus poderia ver: sem um aqui e agora;
sem esperança e sem medo; isento das crenças habituais e preconceitos
tradicionais: calmamente, desapaixonadamente, com o único e exclusivo desejo de
conhecimento - conhecimento tão impessoal, tão puramente contemplativo quanto é
possível a um homem alcançar. Por isso, o espírito livre valorizará mais o
conhecimento abstrato e universal em que não entram os acidentes da história
particular, que ao conhecimento trazido pelos sentidos, e dependente - como tal
conhecimento deve ser - de um ponto de vista pessoal e exclusivo, e de um corpo
cujos órgãos dos sentidos distorcem tanto quanto revelam.
A
mente que se tornou acostumada com a liberdade e imparcialidade da contemplação
filosófica preservará alguma coisa da mesma liberdade e imparcialidade no mundo
da ação e emoção. Ela encarará seus objetivos e desejos como partes do Todo,
com a ausência da insistência que resulta de considerá-los como fragmentos
infinitesimais num mundo em que todo o resto não é afetado por qualquer uma das
ações dos homens. A imparcialidade que, na contemplação, é o desejo extremo
pela verdade, é aquela mesma qualidade espiritual que na ação é a justiça, e na
emoção é o amor universal que pode ser dado a todos e não só aos que são
considerados úteis ou admiráveis. Assim, a contemplação amplia não somente os
objetos de nossos pensamentos, mas também os objetos de nossas ações e nossos
sentimentos: ela nos torna cidadãos do universo, não somente de uma cidade
entre muros em estado de guerra com tudo o mais. Nesta qualidade de cidadão do
mundo consiste a verdadeira liberdade humana, que nos tira da prisão das
mesquinhas esperanças e medos.
Enfim,
para resumir a discussão do valor da filosofia, ela deve ser estudada, não em
virtude de algumas respostas definitivas às suas questões, visto que nenhuma
resposta definitiva pode, por via de regra, ser conhecida como verdadeira, mas
sim em virtude daquelas próprias questões; porque tais questões alargam nossa
concepção do que é possível, enriquecem nossa imaginação intelectual e diminuem
nossa arrogância dogmática que impede a especulação mental; mas acima de tudo
porque através da grandeza do universo que a filosofia contempla, a mente
também se torna grande, e se torna capaz daquela união com o universo que
constitui seu bem supremo.
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